quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O cabeludo e a freira, Parte 1




Fundado no final da década de 50 no século passado, o Colégio Santa Maria é um dos mais antigos da Zona Sul e um dos mais tradicionais do Recife. É amplamente conhecido pelos ótimos resultados acadêmicos dos seus alunos, pelas mensalidades proibitivas e por seu implacável corpo de diretoria, formado por um grupo de freiras católicas famoso pelo conservadorismo extremo e absoluta falta de tolerância. Apesar disso, a instituição é bastante procurada pelos pais, que muitas vezes precisam inscrever seus filhos em listas de espera intermináveis, algumas vezes aguardando anos e anos para que surja uma vaga. Além da perspectiva de boas notas e um futuro acadêmico mais ou menos assegurado, muitos pais procuram o Santa Maria na esperança de que a famosa rigidez das Irmãs Católicas ponha um fim na rebeldia dos seus, por vezes incontroláveis, rebentos. No colégio não se permitem uniformes fora do padrão, velhos, gastos ou sujos. Meninas não podem usar maquiagem de nenhum tipo e nem pintar os cabelos de cores berrantes ou não-naturais, como rosa, verde ou fúcsia. O mesmo se aplica aos meninos que, além disso, não podem usar cabelos compridos, brincos ou qualquer acessório associado, pelas freiras, ao sexo feminino. A ninguém é permitido o uso de piercings de qualquer tipo, símbolos de outras religiões que não a católica ou tatuagens, visíveis ou não.
Foi nesse ambiente quase militar que Pedro se encontrou, depois de se mudar com a família para o bairro do Pina. Pertencendo a classe média alta, Pedro era um aluno razoável e não dava mostras de insatisfação familiar ou qualquer tendência revolucionária, dentro ou fora da escola. Era, como se diz, um bom rapaz, ainda que um tanto sem graça. Estava na escola há alguns meses e já havia feito um número considerável de amigos, poucos adversários e praticamente nenhum sucesso com o sexo oposto. Era verdade que Pedro, ainda que não fosse feio, simplesmente não possuía nenhuma característica que o fizesse se destacar dos seus pares. Era branco, de estatura mediana e magro, tinha cabelos curtos, lisos e de cor castanha. Assim como a esmagadora maioria dos seus amigos, colegas de sala e adolescentes das classes mais abastadas da cidade. Quase todos praticavam um ou mais esportes, como natação, judô ou futebol de salão. Falavam todos sobre os mesmos assuntos, olhavam para as mesmas garotas e se dividiam apenas na hora de torcer pelos três principais times do estado.
Depois de algum tempo, esse excesso de homogeneidade começou a incomodar Pedro. Não que fosse adepto a radicalizações, mas sentia que, por meio de algumas pequenas mudanças em seu visual, poderia obter um maior destaque entre o corpo discente do Santa Maria, principalmente sua metade feminina. Sendo um rapaz de pouca imaginação e desacostumado com a rigidez da educação exercida em um colégio religioso, Pedro decidiu por deixar seu cabelo crescer. Acreditava que as regras, que ele conhecia bem, acerca da aparência dos alunos eram mais um código de conduta do qualquer outra coisa, imaginando que o fato de ninguém desobedecer às normas vigentes se devia puramente à modéstia e ao conformismo dos estudantes. De maneira que simplesmente deixou de ir ao cabeleireiro e passou a economizar o dinheiro dado pelos pais com esse fim para comprar cigarros na banca da esquina e praticar para impressionar as meninas no final de semana, no shopping.
E assim as semanas passaram, as madeixas de Pedro crescendo lentamente, sem pressa, como se antecipassem toda a dor e angústia que causariam para seu dono e fizessem o máximo para poupá-lo, ao menos por um tempo, dos horrores que o aguardavam. Quando os fios começaram a encobrir suas orelhas, Pedro percebeu uma estranha mudança de comportamento entre os colegas. Os alunos de outras turmas lançavam lhe olhares estranhos. Meninos ou meninas, todos pareciam estar se reunindo sutilmente pelos cantos para comentar sobre algum assunto que Pedro não tinha certeza de qual era, mas que parecia monopolizar a atenção de todos. Estranhamente, seus amigos começaram a evitar sua companhia. Quando indagava os mais chegados se havia algo acontecendo ou mesmo se ele havia, inadvertidamente, feito algo errado, recebia como resposta apenas negativas nervosas, seus interlocutores parecendo ansiosos em terminar a conversa. Começou a ser ostracizado dentro do ambiente escolar, passando seus recreios absolutamente sozinho e sob a constante e incômoda sensação de que todos o observavam. Não conseguia atinar para o motivo dessa conspiração, mas estava começando a ficar farto do comportamento absurdo das pessoas ao seu redor. Até mesmo os professores evitavam dirigir-se à sua pessoa e em mais de uma disciplina, o educador havia simplesmente esquecido de anunciar seu nome na chamada.
O cabelo de Pedro agora quase ultrapassava suas orelhas, fazendo com que o garoto adquirisse o hábito compulsivo de jogá-los para trás quando os fios atrapalhavam sua visão. Esse movimento parecia horrorizar todos a sua volta, como se o rapaz estivesse fazendo algo profundamente grotesco ou mesmo obsceno. Passou a encontrar todos os lugares da sala reservados pelos colegas, sendo obrigado a sentar no fundo, muitas vezes com uma ou duas fileiras vazias o separando do resto da turma. Pedro começou a ficar paranoico, buscando uma resposta para o mistério, enquanto parecia ficar cada vez mais repulsivo para todos os seres humanos à sua volta. Sendo filho único e tendo pais que passavam muito pouco tempo em casa, não sabia ao certo com quem falar acerca do problema.
Um dia, estava fazendo o lanche, totalmente só, quando o fiscal de pátio, um homem de meia-idade, alto e obeso, de quem Pedro sempre gostou muito, se aproximou para falar-lhe. Já desacostumado de ter outra pessoa lhe dirigindo a palavra em ambiente escolar, Pedro quase engasgou com sua coxinha.
- Pedrinho...
- Gasp! Er...fala Tonhão! Tudo bom? Como você tá? Quanto tempo, heim? E o nosso Sport, será que sobe esse ano?
- Tá tudo...tudo indo, Pedrinho. Olhe, eu...eu não devia, mas... – e nesse ponto olhou ao redor, suspeitosamente. Assustado, Pedro imitou seu movimento.
- Fala Tonhão, o que foi?
- É que...veja bem. Eu quero saber se tá tudo bem com você. Tá com algum problema em casa? Pode me falar, Pedrinho.
- Oi? Problema em casa? Não, nenhum. Meu videogame quebrou, tirando isso...
- Não, não tô falando disso...é que...você tá diferente e... – Tonhão hesitou, sem encontrar as palavras e olhando fixamente para o topo da cabeça de Pedro, que automaticamente jogos os cabelos para trás. O homem mais velho estremeceu visivelmente.
- O que foi, Tonhão? – inquiriu Pedro, já um tanto nervoso com aquele estranho diálogo.
Tonhão abriu a boca para falar, mas foi interrompido pelo toque do aparelho de rádio que levava à cintura, usado para se comunicar rapidamente com a direção. O fiscal de pátio ficou lívido. Nenhum som saiu de sua boca e ele encarava Pedro, aparentemente sem saber o que fazer.
- Não vai atender, Tonhão? – perguntou Pedro, apontando para o cinturão do seu interlocutor. O aparelho tocou mais uma vez. Tonhão pareceu acordar de um transe e, lentamente, levou a mão ao transmissor. Suspirou profundamente, ofereceu um olhar aterrorizado para o garoto à sua frente e atendeu.
- Alô? Sim, senhora. Sim, senhora. Não, senhora. É, ele...ele se encontra aqui, na minha frente. Sim, senhora. Eu...sim...claro. Imediatamente, senhora. – desligou o rádio com dedos trêmulos e dirigiu sua face marcada pelo desespero para Pedro.
- Tonhão, tá tudo b...
- Pedro, por favor, queira me acompanhar até o escritório da Diretora. – essa última palavra havia sido pronunciada quase em falsete, traindo o medo abjeto que havia se apoderado do homem. Pedro já havia escutado histórias sobre a freira que comandava, há mais de três décadas, aquele colégio. Eram relatos de um horror quase sobrenatural os quais Pedro, pouco imaginativo que era, havia dado pouca atenção. Mas naquele momento, era como se o fiscal houvesse anunciado sua sentença, a pena capital por um crime que ele não estava certo de ter cometido.
- Vai Pedrinho, levanta. Eu vou..eu levo você até lá. Vem, pode se apoiar em mim, se quiser.
- Hmm...valeu, Tonhão, acho que vou andando sozinho mesmo.
- Pedrinho, você...você sabe que gosto muito de você, não sabe?
- Ahn...certo...
- Certo. Só...tudo vai ficar bem, tá bom? – assegurou o fiscal, de forma absolutamente não convincente. Seguiram caminhando em silêncio pelo pátio, os outros alunos encarando-o emudecidos. Ao olhar para os lados, Pedro viu que algumas meninas faziam cara de choro. Entraram no setor administrativo e passaram pelo que pareceu ser uma infinidade de corredores, até chegar em frente à sala da Diretora. Estacaram em frente a uma pesada porta de madeira escura, desprovida de qualquer tipo de adorno, salvo por uma enorme cruz que exibia a figura de Jesus, coberto de sangue e transparecendo um sofrimento inalcançável em seus olhos arregalados. Pedro engoliu em seco.
- Pronto, Pedrinho. Agora, você...é só...olha, você bate que a Diretora já tá te esperando, certo? Só me faz um favor e...e espera eu me afastar, tá bom? – mal completou a frase e o homenzarrão saiu apressadamente pelo corredor, esbarrando desajeitadamente na quina da parede e ainda assim sem diminuir a velocidade. Pedro voltou-se para a porta. Experimentava uma sensação inexplicável na boca do estômago, um mal-estar como nunca antes havia experimentado. Respirou profundamente, ergueu sua mão e bateu timidamente na porta.

Continua...


Um comentário:

  1. Hum...Sport?Videogame?É tu né, o Pedrinho?hehehe
    "Continua" afff!!Diz logo!:P

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Vai, danado, reclama!