quarta-feira, 27 de julho de 2011

Gripe






Ninguém gosta de ficar doente. Mas entre as moléstias cotidianas, essas que não são graves o suficiente para provocar a simpatia alheia, mas ao mesmo tempo conseguem transformar seu corpo em um inútil saco de geleia, a gripe é a pior. Todos estão sujeitos, a qualquer momento, a ficar gripados. E o fato de todos saberem que é uma doença transmitida pelo ar faz com que os afetados sejam sutil, porém firmemente ostracizados pelo resto da sociedade mais ou menos sadia. E não tem muito como esconder. Você espirra e o velhinho simpático, esperando a vez dele no jogo de dominó, sai correndo desabalado, cobrindo a boca e o nariz. Ao passar por você, justifica, constrangido:

- Estou perto de me aposentar, não posso correr riscos.

Ao subir no ônibus, nota que um policial encara com suspeita os seus olhos vermelhos. Você os fecha e pede para chegar logo em casa, enquanto se pergunta de onde vem aquele assovio constante e ritmado, bem ao lado do seu ouvido. Horrorizado, percebe que é o seu próprio nariz, semi-entupido de muco esverdeado, formando uma bolha de catarro a cada respiração. Sente a gosma iniciando sua derradeira descida em direção aos seus lábios trêmulos. Por instinto, inspira profundamente, revertendo o movimento da meleca e fazendo um barulho semelhante ao de um aspirador de pó enguiçado. Em pânico, percebe que engoliu toda aquela nojeira, que lentamente escorre pelo seu esôfago, sob os olhos incrédulos dos passageiros ao seu redor. Ao seu lado, uma jovem mãe não se contem e descarrega seu café da manhã pela janela. O bebê em seu colo acorda e, por reflexo, dá uma golfada na cabeça do senhor calvo sentado na poltrona da frente. Com a voz embargada de catarro, você se desculpa aos passageiros pelo transtorno e a humanidade em geral por ter nascido.

De repente, sente uma explosão partindo da altura dos pulmões e se movimentando rapidamente em direção ao seu nariz. Pode ser mais um espirro ou o encosto de exu caveira finalmente abandonando seu corpo devastado. Na dúvida, cobre o rosto com as mãos e tenta, pateticamente, proteger a civilização da patologia que transformou você em mero veículo de suas disseminações. O escandaloso espirro é respondido por esperançosas exclamações de “saúde” por estranhos até mesmo do lado de fora do ônibus em movimento. Você olha para as suas mãos em concha, rente a sua face avermelhada e percebe duas coisas. A primeira é que todos os fluidos e miasmas produzidos pelo seu corpo foram parar em suas palmas, juntando-se em uma espécie de pasta brilhante e pegajosa. A segunda é que Deus tem um senso de humor doentio. Sua parada se aproxima e você tenta, como uma espécie de contorcionista mentalmente deficiente, segurar toda aquela porcaria junto ao rosto ao mesmo tempo em que procurar puxar a cordinha com os cotovelos, rodopiando loucamente pelo veículo e derrubando com uma cabeçada certeira o moço cego que havia tomado a infeliz decisão de escolher aquele ônibus para vender canetas.

Para alívio dos outros passageiros, você finalmente desce do coletivo, ainda com as mãos junto ao rosto e sentindo uma fina coriza escorrer pelo queixo e deixar uma trilha escorregadia na calçada. Com a cabeça latejando no ritmo dos pingos que escapam do seu nariz, você se arrasta até sua casa, exibindo a mesma agilidade e coordenação motora de um zumbi recém-desenterrado. Sentindo-se idoso, você se joga na cama ao compreender que a privada do seu banheiro não teria potência suficiente para leva-lo ao esquecimento final. Antes de fechar os olhos e rezar para que o mundo acabe de uma vez, você sente uma incômoda sensação, que lhe tira o doce alívio do sono.

Havia esquecido de comprar remédio na farmácia.


Um comentário:

  1. Lembrei-me de uma frase do tempo em que eu ficava bem gripada...logo após uma tosse produtiva persistente: "Mastiga esse osso!"

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Vai, danado, reclama!