quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Vida de estagiário: o abatedouro clandestino, parte II


O Coque. Uma favela encrustada no meio do caminho entre as Zona Sul, Norte e o Centro do Recife. Barracos caindo aos pedaços, ruas sem asfalto, prostituição, tráfico de drogas, violência e Testemunhas de Jeová. Não satisfeito, Deus quis que a comunidade existisse em uma ilha, a de Joana Bezerra, provavelmente para dificultar a fuga de qualquer um que tenha a infelicidade de ir parar lá dentro. E tem quem diga que o inferno não existe.
Seguíamos a viatura em alta velocidade, passando por rua e vielas que eu jamais havia visto antes. Era como se uma parte totalmente nova e absolutamente horrenda da cidade fosse brotando do asfalto debaixo dos pneus gastos da Kombi onde estávamos. À medida que nos aproximávamos do nosso local de destino, Biu, o motorista, aparentava mais e mais nervosismo. Meu colega de equipe descansava a cabeça grisalha na mão esquerda, tinha os olhos fechados e parecia murmurar consigo mesmo, como se rezasse. Eu considerava seriamente a possibilidade de pedir para descer do veículo e enviar minha demissão no dia seguinte, alegando angústia mental extrema e total ausência de coragem.
Subimos uma ponte, descemos um viaduto, desviamos de vários buracos, entramos em todos os becos e, meio que de repente, chegamos à Comunidade do Coque. As ruas estreitas eram, em sua maioria, de barro e coalhadas de poças de lama. As calçadas inexistentes eram os alpendres dos barracos horríveis, formados por uma colcha de retalhos de folhas de compensado e umas poucas paredes de tijolos quebrados, nus, sem reboco. Eram essas habitações miseráveis que projetavam sombras anãs pelas via, uma vez que não havia árvores ou qualquer coisa que filtrasse o sol abrasador do Recife. Cachorros mancos buscavam alimento em pilhas de imundície nas esquinas, espalhando a porcaria pelas ruas, fazendo com que o povo transitasse no meio do lixo. O povo. Nos olhavam com expressões indecifráveis, observando pelas janelas semicobertas o movimento. Cochichavam uns com os outros e apontavam com a cabeça a escandalosa viatura que abria caminho. O que se comentava ninguém sabia, mas parecia claro que não éramos bem-vindos naquele local.



 
- Putamerda... – balbuciei, olhando ao redor impressionado. Recife possui um sem-número de favelas, mas eu jamais havia entrado em uma, muito menos acompanhado de um carro de polícia que só faltava apresentar um “META BALA” pintado em letras garrafais no capô. Para que o leitor possa fazer uma ideia aproximada da situação em que nos encontrávamos, requisitei ao Departamento de Arte uma imagem aérea com legendas explicativas.

  Clique na imagem para ampliar
Abatedouro clandestino
Viatura
Nós
Pontos de perigo extremo que podem resultar em morte, desmembramento e violência sexual bizarra, não necessariamente nessa ordem.
Rotas de fuga

Talvez você tenha percebido que as rotas de fuga não estão representadas na imagem. É porque não existia nenhuma. O estagiário do Departamento de Arte deve ter se confundido e adicionado a legenda. Pode-se perceber que a nossa situação era, no mínimo, delicada. Olhei para Biu, que arranhava as marchas da Kombi, devido ao tremor incontrolável de suas mãos.
- Será que...será que tem algum ex-vizinho seu por aqui, Biu? – perguntei, buscando uma referência local, caso o pior acontecesse e fosse necessário nos entrincheirarmos até a chegada das forças armadas.
- Tomara que não... – respondeu Biu, que tinha fama de gostar da mulher dos outros, afundando no banco do veículo e fazendo o possível para esconder o rosto.
Ao meu lado, o tutor da Vigilância Sanitária pareceu ter saído do seu transe e consegui discernir a palavra “amém” da sua ladainha em voz baixa.
- Mas tu não era ateu?
- Frederico, não existem ateus no Coque. – retorquiu o homem mais velho, recém-convertido em fanático religioso por força da necessidade. Benzeu-se e depois pegou do bolso do motorista, sem pedir permissão, a imagem de Nossa Senhora, beijando-a fervorosamente.
O carro de polícia parou em uma rua perto do rio e Biu, suspirando, estacionou a uma distância respeitosa da viatura. Olhei para meu superior, que parecia perdido em pensamentos.
- E aí?
- Oi? Ah, sim. Agora a gente...a gente vai lá e faz a...faz a inspeção.
Respirei fundo, abri a porta e saí da condução.

Continua...

2 comentários:

  1. Espero que ninguém tenha te ameaçado com algum facão durante a inspeção!Dá até medo de imaginar esse abatedouro:O

    ResponderExcluir
  2. Termina logo essa porra, velho. Tô curioso!

    ResponderExcluir

Vai, danado, reclama!