sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Vovó e o futebol





Passar o fim de semana com minha avó nem sempre se resume à habitual maratona de novelas do sábado. Às vezes, tento assistir ao futebol com ela do lado, que não tem lá uma grande compreensão acerca do esporte mais popular do mundo. Por causa disso, diálogos como o reproduzido abaixo são bastante comuns nas tardes arrastadas de Olinda.


- Meu filho, você precisa comer direito. Vai acabar ficando doente, já tá aí o couro e o osso só...

- Vovó, veja bem, a senhora me fez comer três tapiocas, um prato de cuscuz com charque, outro de macaxeira com linguiça, um de inhame com carne moída, duas bananas cozidas, cinco fatias paridas, quatro pedaços de queijo coalho, uma cartola, uma fatia de bolo de macaxeira, outra de bolo de rolo e dois pedaços de pão Recife, fora a canja, a sopa de verdura, a vitamina de abacate, o suco de graviola e o leite com chocolate. E o resto da galinha de cabidela do almoço de hoje. E a sobra da janta de ontem.

- Só isso?

- Vovó, seja sincera, a senhora tá tentando me matar de uma forma altamente criativa?

- Meu filho, o seu problema é que você não come nada forte.

- Mais forte do que isso, só se eu enrabar o Stallone.

- É o quê, meu filho?

- Nada, vó. Olha, vai passar o jogo do Sport, bora assistir?

- Bora sim, meu filho. O Sport é esse da camisa vermelha e branca, né? Eu acho tão bonita essa roupa...

- Não, vó. Esse aí é o Náutico. O Sport é vermelho e preto, tá vendo?

- Sim, sim. É que é parecido, preto e branco a gente confunde às vezes, é normal. Eu só não gosto desse bicho que eles escolheram de mascote, uma cobra enorme, horrorosa, ave Maria, vou até me benzer aqui e...

- Não, vó, esse aí é o Santa Cruz. O símbolo do Sport é o leão, o mesmo do estado de Pernambuco. O mascote é aquele infeliz ali fantasiado de Leo, correndo pra cima e pra baixo e se jogando na grama toda vez que tem um lance perigoso.

- Vixe Maria, meu filho, imagine o calor que esse coitado tá sentido!

- Azar dele, vó. Quem mandou não estudar? Tem mais é que se arrombar mesmo.

- Meu filho!

- Opa, na trave!

- Isso vale quantos pontos?

- Oi?

- Quando bate na trave, vale quantos pontos?

- Quando bat...não, vó. Trave é trave. Não vale nada.

- Ah, que pena, né meu filho?

- Hmm...é. Devia valer meio ponto. Mas aí o outro time ia estar na frente, a defesa do Sport tá uma droga.

- Mas também, eles botam uns meninos muito novos pra jogar, né? Olha esse aí que pegou a bola com a mão, sabia nem que podia...

- Vó, esse aí é o gandula. O trabalho dele é devolver a bola pros jogadores quando ela sai.

- Mas ele deu outra bola! Que absurdo!

- Vó, ele entrega a bola que tiver mais perto. Não faz diferença, bola é tudo igual.

- Faz diferença sim! Eu lembro da Jabulani, era totalmente diferente!

- Mas vó, a Jab...hmm...tá, ok. A senhora tá certa, é diferente mesmo.

- Eu entendo das coisas meu filho.

- É verdade.  Opa, pênalti! Pênalti a favor do Sport!

- Isso é bom, meu filho?

- É sim, vó. O Sport pode dar um chute direto, só com o goleiro do outro time tentando defender. Quase sempre sai gol.

- Oxe...e isso tá certo? 

- Depende. Quando é a favor do nosso time, tá certíssimo.

- Entendi.

- ...quepariu! Não acredito!

- Que foi, meu filho?

- O viado do jogador do Sport perdeu o pênalti!

- Mas bateu na trave, é mais meio ponto!

- ...é, vó, tinha esquecido desse detalhe. Mesmo assim, o time adversário tá ganhando com uma vantagem de uns...sete pontos e meio, no mínimo.

- Aquele rapaz ali de amarelo, é de qual time?

- Vó, aquele ali é o juiz.

- Sim, o moço do apito! Tinha esquecido dele.

- Esse mesmo. Tem a mãe mais famosa do brasil.

- A mãe dele é artista?

- Não, vó, é que...ahn...deixa pra lá. Opa, tão se aproximando da área do Sport, ai meu Deus...

- GOOOOOOL!

- Caralho, vó! Foi gol do time adversário!

- Eita e foi?

- Pronto, agora é que não ganha mesmo. Quer saber? Cansei desse jogo, vó. Vou dormir.

- Mas já? Tava tão divertido!

- ...

- Quer vitamina de abacate?



E assim terminava mais uma peleja do Sport, dessa vez com os comentários sempre oportunos da minha avó. Queria poder dizer que, no final, meu time do coração acabou virando o jogo e venceu o adversário, mas não foi o que aconteceu. Perdemos, e nem o novo sistema de pontuação criado pela minha avó poderia ter salvado o time.

E foi ela que, sem entender metade do que se passava, mais se divertiu durante toda a partida.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Blecaute II




Meus ouvidos começavam a captar sons que não poderiam existir. Aquele borbulhar era a água do filtro fervendo na cozinha ou meus neurônios estalando devido ao calor? Será que minha massa encefálica entrava em ebulição dentro da minha caixa craniana ou aquele líquido escorrendo pelos meus ouvidos era simplesmente o suor acumulado nos meus cabelos empapados? Sentia que pisava em brasas e que o ar, imóvel, ficava cada vez mais denso, gelificando-se ao meu redor e impossibilitando a minha respiração. Meus olhos injetados de sangue não conseguiam fixar em um ponto só enquanto eu buscava uma saída para aquele pesadelo. Até que vi a janela.

Me aproximei devagar da grande abertura retangular na parede da sala. Sentia minha pele pegajosa e lustrosa de transpiração. Usei o sofá manchado como escada e me cheguei à janela. Olhei para baixo. Ao menos, enquanto caísse, sentiria o ar se movendo e o vento zunindo em meus ouvidos por uma última vez. Não ia durar muito tempo, já que eu morava no terceiro andar, mas seria o suficiente para algum sentimento de libertação derradeira daquele calor horrendo durante os poucos microssegundos que durasse a queda. Não cheguei a pensar na família e amigos que deixaria para trás. Qual o sentido de uma existência sem brisa, mesmo que seja uma artificial, gerada por um ventilador? Se até essa condição básica para a sobrevivência humana no Verão do Recife me havia sido negado, não me custava terminar aquela farsa de vida da forma mais apoteótica possível.

Abri os braços, tentando abraçar a maresia inexistente e fechei os olhos, em preparação à minha passagem para um mundo melhor e, esperava, cheio de correntes de ar. Voltei meu rosto para baixo mais uma vez, sentindo as gotas de suor escorrerem pela minha face. Respirei fundo e me movi para frente.












Apenas para ser arremessado para trás por uma explosão de luz que atravessava as minhas pálpebras apertadas. Me segurei às laterais da janela, me equilibrando precariamente no peitoril. Abri os olhos lentamente, tentando apreender o panorama, agora iluminado, que se descortinava à minha frente. A energia havia voltado e, com ela, todas as lâmpadas do prédio e da maioria dos apartamentos. Inclusive o dos vizinhos da frente, que viam um homem de braços abertos, lambuzado pelo que parecia ser uma mistura de azeite e óleo de dendê, completamente nu. A bilola estaria ao vento, caso houvesse algum. Horrorizada, a família olhava para mim, incluindo a bisavó cadeirante e as sobrinhas gêmeas de seis anos de idade. Todos precisariam se submeter, pelo resto das suas vidas, à terapia intensiva para tentarem extrair dos seus cérebros a terrível imagem que eu havia imprimido neles. Provavelmente seria inútil, mas eles certamente tentariam.

Resignado, desci da janela, após acenar para os espectadores da forma mais natural possível. Apenas a bisavó respondeu, com um sorriso sem dentes. O apartamento se enchia de luz e do som do ventilador voltando ao funcionamento. Busquei o relógio do computador, que acabava de reiniciar seu sistema, esperando um lapso de tempo de, no mínimo, umas sete horas.

O blecaute havia durado 27 minutos.