quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Carnaval de regras, parte final







- Controle seus hormônios: Sim, estamos falando da Festa da Carne aqui, e não no sentido culinário da coisa. Mas não é preciso ser um pudico para entender que tudo tem limite. O Carnaval, ao menos nas cidades do Recife e Olinda, ocorre, em sua maior parte, em espaços públicos. Ou seja, o direito de um folião termina onde começa o do outro. E, incrivelmente, nem todo mundo está ali para assistir suas tentativas ébrias de baixar a calcinha do travesti que você acabou de conhecer em plena ladeira da Sé. Tome tenência e lembre-se que festa é uma coisa, putaria é outra e caso você planeje qualquer uma das duas, me chame. Não, sério, me chame. Por favor. No mais, lembre-se de que no mundo atual, qualquer deslize é imortalizado por câmeras de celular cada vez mais avançadas e intrometidas. Por mais que pareça uma boa ideia na hora, seguir o Homem da Meia-Noite vestindo apenas a purpurina que recobre sua bilola pode chocar alguns dos foliões mais sensíveis e, caso você seja flagrado por algum colega, ainda corre o risco de ter uma conversa séria e, provavelmente, final com seu chefe. Se você, inacreditavelmente, deu a sorte de topar com alguém que queria ir para a cama com você, mesmo tendo todos os dentes ainda, municie-se com algumas das literalmente centenas de camisinhas que são distribuídas gratuitamente pelo governo e siga para o motel mais próximo. Ao menos lá, ninguém vai precisar te ver chorar até dormir enquanto coloca a culpa da sua impotência na maldita Jurubeba.


- Quer brigar? Reflita antes: O álcool transforma as pessoas deixando algumas delas mais agressivas. Curiosamente, a esmagadora maioria dos bêbados brigões parece ter o bom senso de agredir apenas as crianças, os mais fracos e as mulheres, jamais dirigindo sua violência etílica para alguma figura de autoridade, como um policial. Talvez algum recôndito quase esquecido dos seus cérebros encharcados pense “Ele foi treinado, sabe se defender, carrega um revólver, um cassetete, um spray de pimenta e, se eu tentar bater nele, tudo isso será violentamente acondicionado no meu cu”. Mas a ciência ainda é inconclusiva nessa questão. Enquanto respostas não chegam, melhor não arriscar. Se você é dos que se transfigura em Chuck Norris quando enche o rabo de cachaça, existem algumas opções para você:

1- Fique em casa e beba sozinho.

2- Não beba. Jamais.

3- Morra.

A última opção, mais confiável, é estranhamente impopular. Já as duas primeiras são bastante racionais e podem salvar você de tomar todas, acreditar que recebeu o espírito do cavalo do cão e levar um cacete indizível dos irmãos e primos daquele boy magrinho que não aguenta brincadeira no Carnaval. Sua vida pode, literalmente, depender disso. E caso você seja provocado por algum energúmeno desse calibre, a melhor pedida é tirar por menos, ficar de boa e seguir atrás da troça como se nada tivesse acontecido. Se um pinguço mais folgado ultrapassar os limites do carnavalescamente aceitável e resolver dar um tapa na bunda da sua namorada, respire fundo, grite “Foda-se, é Carnaval!” e dê você mesmo um tabefe na outra nádega da sua amada enquanto pula ritmicamente para longe do cachaceiro inconveniente.


- Cuide-se: Carnaval é muito bom, mas não é todo mundo que aguenta pular ladeira acima e ponte abaixo por quatro dias seguidos e chegar na Quarta-Feira de Cinzas razoavelmente inteiro. Alguns cuidados simples podem impedir que a última marchinha que você vai acompanhar nesse mundo seja a fúnebre.

- Hidrate-se. Em Olinda, principalmente, os morros parecem deixar as pessoas mais próximas do sol, que queima mesmo quando o dia está nublado e, aparentemente, fresco. Nem precisa dizer que cachaça não é água, por isso leve a sua ou ao menos dinheiro para comprar dos infindáveis ambulantes que você encontrará pela rua. As meninas costumam beber menos água do que os rapazes, já que para elas o ato de urinar é um tanto mais inconveniente no meio da folia. Existem banheiros químicos, que nunca são suficientes, limpos ou confortáveis. As filas são imensas para as mulheres, então o lance é se programar com antecedência ou pular o carnaval usando fraldão geriátrico.

- Alimente-se. Saco vazio não para em pé. As opções alimentares no meio da rua não as mais equilibradas em termos nutritivos, mas pior é ficar sem comer. Se for passar o dia na rua, tome um bom café-da-manhã e tente fazer ao menos mais duas refeições fora de casa. Saladas são refrescantes e saudáveis, mas se você não confia no local que está oferecendo o prato, prefira os alimentos cozidos. A chance de uma infecção alimentar, também conhecida como caganeira, diminui sensivelmente. Os amigos que estiverem dividindo uma casa com você agradecem.

- Passe filtro solar. Como diria Pedro Bial, é uma das cosias mais importantes que você vai fazer na vida e pode te salvar de passar o resto do mês parecendo um boto-rosa. Se você só pretender brincar a noite, a proteção é, evidentemente, desnecessária. O aspecto pegajoso da loção compensa com uma função de lubrificante social, ajudando o folião a deslizar entre as troças de maneira rápida e desconfortavelmente sexual.


Então é isso. Seguindo essas dicas, o Blog da Reclamação garante que você terá um Carnaval muito mais gostosinho e, mais importante, ainda aumenta suas chances de estar vivo para curtir os próximos!


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Carnaval de regras, parte I







E o Carnaval finalmente chega ao fim, junto com a paciência, o dinheiro e a esperança que muita gente por aí ainda tinha de casar de branco ou de chegar aos trinta sem descobrir que é pai. Os cariocas acompanharam o desfile das escolas de samba pela TV, os paulistas fizeram confusão imitando o Carnaval carioca, os baianos se arrastaram ao redor dos trios elétricos enquanto os turistas brancos pulavam dentro dos cordões de isolamento e quem ficou ou veio para Recife/Olinda, aproveitou o Carnaval de rua, característica da tradição local, desprovido de abadás de estética duvidosa e ex-BBBs seminuas, mas ainda assim apreciado por muita gente. Vai entender esse povo. A bagunça da folia pernambucana é a um só tempo seu grande trunfo e sua maior fraqueza. Sem regras muito claras, cada um faz seu próprio Carnaval, brinca como quiser e é livre para fazer tudo aquilo que as amarras sociais e familiares impediram durante todo ano. Sim, vovó, estou falando da senhora. Depois conversamos sobre isso. E, por favor, devolva a minha fantasia de Gretchen.

Mas eu divago. Sim, o lado ruim da festa da carne em Pernambuco é o excesso de democracia. Não há seguranças segregando e ditando regras, as troças carnavalescas não recebem notas nem são julgadas por ninguém e a única lei é: não toque Axé. Mas aí já é bom-senso mesmo. Coisa que, durante o Reinado de Momo, parece ser mais raro do que político honesto no Brasil. De forma que o Blog da Reclamação, sempre atento ao seu papel civilizatório, resolveu tomar para si a ingrata, ainda que necessária, tarefa de educar as massas incultas que se aglomeram nas ladeiras de Olinda e nas pontes do Recife, visando ajudar a perpetuar um Carnaval socialmente mais organizado e sexualmente menos constrangedor. Turistas e nativos, sigam essas regras básicas e, ano que vem, diminuam o risco de aparecerem em posições comprometedoras no redtube ou de levarem um tabefe merecido enquanto disputam com um mendigo um lugar para dormir na sarjeta.


- Você não nasceu encangado: Tudo bem dar as mãos para não se perder do seu grupo/namorado/peguete/cafetão no meio da folia, mas não vamos exagerar. Tem gente por aí fazendo filas de 17 pessoas, braços dados, querendo sair da Ladeira da Misericórdia em Olinda e chegar na Praça do Marco Zero, no Recife, unidos como uma centopeia humana e achando que o Mar Vermelho de mundiça vai educadamente se abrir à passagem daquele Moisés coletivo. Não vai e a corrente humana atrapalha, irrita e não faz sentido. Se seu grupo é grande, fragmente-o em porções menores e mais manejáveis de no máximo três indivíduos e combine um ponto de encontro caso alguém se perca. Os marinheiros de primeiro Carnaval, os inseguros e os extremistas podem tatuar um mapa nas costas mostrando locais de apoio e o endereço da casa/hotel onde estão. Supositórios com capacidade de GPS são opcionais para os mais dementes e/ou festeiros.

- Você será julgado pela sua fantasia (ou pela falta dela): Uma das coisas mais legais do carnaval é botar uma fantasia e fingir, por alguns dias ou horas, que a gente é outra pessoa. Só que para cada roupa existe um arquétipo associado, firmemente enraizado no inconsciente coletivo dos bêbados carnavalescos. E é através desses estereótipos que as pessoas vão te enxergar. Por isso não adianta inventar: vá para a folia ciente das reações que sua fantasia vai despertar. Homens anabolizados que se vestem de anjinho/cupido/espartano/Adão/naturista/bebê/Hulk/banhista/salva-vidas/feto ou qualquer outro personagem que exija peças mínimas de roupa já vão sabendo que chamarão atenção apenas da parcela gay do Carnaval. O lance é aceitar a situação e fincar o pé na Rua 13 de maio, em Olinda ou encher a cara e terminar o dia beijando a tia da cerveja. Não há opções intermediárias. Já as meninas que colocam uma fantasia sensual, estilo freira endiabrada ou noiva ninfomaníaca têm todo o direito de se indignar com os imbecis que, entra ano, sai ano, tentam beijá-las á força. O que elas não podem fazer é se lamentar por não terem achado o homem da vida delas, apenas um caso grave de mononucleose. Os desprovidos de imaginação, os desorganizados ou os que acham que usar uma fantasia no Carnaval, por incrível que pareça, é queimar o filme, acabam amargando uma experiência pela metade, com foliões inconvenientes e alcoolizados perguntando insistentemente “E essa fantasia de turista aí, deu trabalho pra fazer?”.



Continua...


terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Malhação é alegria, parte II






Passei para outro aparelho e, antes de me deitar, inspecionei o acolchoado. Estava rasgado em vários pontos, com uma espuma marrom escapando das falhas e exalando um improvável odor de peixaria. A superfície do banco brilhava com uma camada grossa e gelatinosa de suor velho misturado com caspa, formando uma argamassa orgânica que estava prestes a adquirir consciência e reivindicar seus direitos. Passei alguns segundos fitando, horrorizado, a máquina que eu deveria usar, quando o instrutor materializou-se ao meu lado, aparentemente vindo de lugar nenhum.

- Suor pra caralho. Foda, né? Pior é a procedência. O pessoal sua por todo canto, claro, mas como eles malham deitados aí, é mais suor de cu mesmo. Escorre pelo rêgo, sabe? A gente limpa a cada 15 dias, mas ele geralmente evapora antes disso. E depois se condensa no teto. Aquilo lá não é goteira, bote fé. A rapaziada chama isso aí de “chuva de hepatite”, HAHAHAHAHAHAHA! Tá ligado que hepatite se pega pelo suor também, né? Daí pinga na cara, no olho, na boca, pense, HAHAHAHAHAHAHAHA!

- ...

- Mas diz aí, como andam as tuas vacinas?

- Elas...tão em dia. Eu acho.

- Massa. Antirrábica também, né?

- Oi?

- Nada. E aí, vai começar?

- Vou...vou. Vou sim. Deixa só eu ajeitar a minha luva aqui e...

De repente. Fez-se um silêncio ensurdecedor. As pessoas pararam suas séries no meio para olhar para mim. Percebi que era o único na academia usando proteção para as mãos.

- Hmm. Algum problema?

Uma mulher mais alta que eu e de formas retangulares se aproximou e mostrou as palmas, que com os anos haviam se transformado em dois cascos onde mal se distinguia a divisão entre os dedos.

- Luva pra quê? Tem que pegar calo, boy! Tu sois fresco, é?

- Bom, eu...

- TU SOIS FRESCO??

- Sou! Quer dizer, não sei mais! Eu...eu vou malhar ali, ok?

As pessoas ficaram me olhando enquanto eu me afastava para um canto obscuro da sala de ginástica. Distraído, me encostei em um aparelho onde dois brucutus se revezavam utilizando pesos desumanos.

- Opa, vai puxar ferro, pai?

- ...oi? Eu? Não, eu preciso ver na minha ficha...

- HAHAHAHAHAHAHAHA, ficha? Mas é um novato mesmo.

- E...como vocês fazem pra lembrar todas os exercícios e os pesos? Memorizam a ficha inteira?!

- Claro que não. Um dos efeitos colaterais do anabolizante de cavalo que eu tomo diariamente é a perda progressiva e irremediável da minha memória. Quando quase esqueci o caminho da academia, resolvi dormir aqui, enrolado nos colchonetes usados. Agora eu esqueci foi o caminho de casa, mas quem se importa?

- Então como...?

- Simples. Eu tatuo as minhas séries, assim eu nunca esqueço aquilo que realmente importa na minha vida.

- Mas...mas as séries mudam regularmente! Como você vai...

- Eu uso o corpo todo. Só falta a cabeça, o saco e a bunda. Mas já cheguei no períneo. Observe!

- Pelo amor de Deus, nãããããrrrrrrrrrrrrrghhh!

Atordoado pela dantesca visão, me afastei aos tropeços. Meus globos oculares, forçados ao limite, procuravam se afastar do exterior do meu rosto e se enterrar mais profundamente na minha cabeça, quase se fundindo ao cérebro. Nesse momento, senti pequenos tremores, em um ritmo compassado, como se um bate-estaca estivesse em funcionamento no terreno ao lado. Quando dirigi meu olhar para a escada, vi uma criatura saída das fábulas das academias de subúrbio. Tinha mais de dois metros de altura e braços que rivalizavam com as colunas de sustentação do edifício. Só as veias que corriam pelo antebraço eram mais grossas do que as minhas canelas. As duas, juntas. As pernas eram tão grossas que produziam um som de raspar e, tive a impressão, um leve faiscar no ponto onde as coxas de encontravam ao caminhar. A besta mitológica tinha cabelos compridos, olhos esbugalhados e um sorriso feroz.

- Aê! Cadê essa galera da malhação? EU PERGUNTEI “CADÊ?”!

Imediatamente, as pessoas ao redor começaram a emitir gritinhos de encorajamento mútuo, redobrando os esforços em suas respectivas máquinas. Um frequentador magrinho dobrou seus pesos em resposta à saudação do monstro marombeiro, como que obedecendo um comando tácito e silencioso. Lágrimas de suor escorriam por todos os poros do trêmulo rapaz.

- Eu gosto de ver assim! No gás! MALHAÇÃO É ALEGRIA!

As pessoas repetiram o axioma, enlevadas, mal dando uma pausa entre uma série e outra. O troglodita deitou-se na máquina de supino. Como se fossem um só, as pessoas ao redor cederam todos os seus pesos para ele. Temeroso, segui o movimento coletivo disponibilizando as minhas ridículas anilhas de 2kgs. A entidade anabolizada construiu para si uma barra de exercícios de proporções absurdas. Ao flexionar os músculos na primeira repetição, temi que deslocasse o eixo da Terra. As pessoas, mesmerizadas, acompanhavam sua contagem.

- UM! AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHH!

- DOIS! GGGGGGGGGAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHH!

- TRÊS! MALHAÇÃO É ALEGRIA!

O povo seguia transfixado, enquanto eu me afastava discretamente daquele culto. Da rua, ainda podia ouvir os rugidos daquele ser, seguidos por aclamações múltiplas. Resignado, cheguei a uma decisão.

No dia seguinte eu saí da academia e comecei a correr na praia.



segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Malhação é alegria, parte I






Depois dos 30, sabemos todos, a barriga cresce, a bunda entra, as pernas afinam e o pinto continua funcionando que é uma beleza, por que, algum problema? Mas enfim, para aqueles que não têm condições financeiras de compensar a irreversível degradação física com um carro conversível, resta apenas iniciar uma luta eterna e desigual contra a natureza, através de uma combinação de dietas irresponsáveis, exercícios físicos extenuantes e pactos com entidades demoníacas. Como é um tanto impraticável manter, alimentar, limpar e sacrificar cabras a Belzebu em uma quitinete, decidi que entrar em uma academia talvez fosse uma maneira digna de cuidar um pouco mais da aparência. Afinal de contas, o Verão já está aí, o Carnaval vem logo depois e quando a gente menos espera, a recepcionista já está chamando nosso nome na sala de espera do proctologista. O que eu estou tentando dizer aqui é que o tempo passa rápido demais e se a gente não tomar cuidado, pode acabar como uma trêmula massa flácida semiconsciente com o exato formato de um sofá de dois lugares.



Ou de três lugares. Depende do tamanho do seu apartamento.


Depois de quase 10 anos sem pisar em uma academia, eu estava um tanto apreensivo e tinha sérias dúvidas acerca da minha capacidade de adaptação àquele ambiente. Conheci o instrutor, que foi me explicando como as coisas funcionavam no local.


- Véi, é o seguinte: praticamente só tem homem nessa merda. Parece alistamento, um bando de macho suado malhando sem parar. E eles fedem. É a dieta de proteína e o excesso de anabolizante. Sai pela pele, sabe? Por via das dúvidas, é melhor você trazer sua própria agua. Não confie no bebedouro e não aceite nenhum líquido que lhe ofereçam. Você pode acordar no dia seguinte com a bilola do tamanho de um plâncton. Vai por mim.

- Hmm. Ok. Vou me lembrar disso. Posso...posso começar?

- Vai lá, meu filho. Qualquer dúvida, me procure. Eu vou estar naquele canto, rodeado pelas únicas mulheres do recinto.


Fui seguindo a ficha, que indicava quais máquinas usar e os exercícios que eu deveria realizar, em uma ordem específica. Os alto-falantes despejavam música eletrônica em um volume ensurdecedor. Enfiei os plugues do MP3 Player nos ouvidos até pressionarem meus tímpanos e tentei me concentrar na voz de Freddy Mercury. Homens gigantescos passeavam de um lado para o outro, aparentemente utilizando todas as máquinas ao mesmo tempo. Um deles era tão grande que os outros frequentadores usavam o bíceps suado dele como espelho para corrigir postura. Outros já chegavam para malhar devidamente besuntados, como se estivessem prontos para uma rodada de luta greco-romana ou acabassem de cumprir um turno fritando coxinha. Entravam no ambiente deslizando, socialmente lubrificados e brilhantes. Rapidamente, aprendi que um estranho contrato social se operava ali. Havia uma hierarquia, baseada nas dimensões do tórax e na quantidade de peso levantado. Recém-chegado, encontrava-me não na base da cadeia alimentar, mas fora dela, um elemento estranho incapaz de ser ao menos notado pelas outras pessoas.

Depois de alguns minutos de exercício solitário, uma moça bonita se aproximou. Com um sorriso, apontou para uma maromba semelhante a um eixo de caminhão que estava solta no chão emborrachado e perguntou se eu a estava usando. Devolvi o sorriso e esclareci que não, eu estava usando outro peso. Ingenuamente, ergui o ridículo halter colorido em minha mão, pouco mais pesado do que um celular e certamente reservado para crianças de colo, idosos operados e pacientes em coma. O sorriso dela deformou-se em uma expressão muito semelhante à de uma pessoa que acaba de encontrar algo viscoso na sola do sapato. Afastou-se sem mais uma palavra, levando a enorme maromba com uma mão só. Reuniu-se com algumas amigas e começaram a falar e soltar sonoras gargalhadas, enquanto olhavam em minha direção com um misto de pena e divertimento. No intervalo entre uma música e outra, pude distinguir algumas palavras, como “virgem”, “tabaco leso” e “pinto pequeno”, mas pode ter sido apenas a minha imaginação.



"Ele deve ter se matriculado no sistema de cotas para anões genitais, HAHAHAHAHAHA!"


Passei para o supino horizontal, deitando de costas em um acolchoado que cheirava a azedo. As últimas repetições levavam meus braços a tremer perigosamente. O esforço brutal fazia com que meus pés, estranhamente, adquirissem vida própria, sapateando tal qual um passista de frevo, enquanto eu bufava como um guinu asmático. De repente, escutei uma voz masculina sussurrando próxima demais do meu ouvido.


- E aí, meu querido? Tá a fim de um toque aqui atrás?


Com meus braços lutando para não derrubar a barra sobre a minha própria laringe, meu corpo entrou automaticamente em posição de defesa, cerrando minhas nádegas de forma a oferecer o máximo de proteção à minha retaguarda. Nem mesmo um alfinete conseguiria invadir meu espaço íntimo.


- Um...um toque? Atrás? Não, cara, eu...eu acho que eu não...

- Besteira. Já vi que você é dos que precisa de um de vez em quando. Lá vai, heim? Se prepare.

- Não...não! Pelo amor de Deus! Deixa eu...deixa eu pelo menos ligar pra minha mãe e...

- Agora! Huuuuuuuuuuuuuuuuuu!

- Gaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah!


Em um esforço sobre-humano, ergui a barra de ferro até a altura dos suportes. Achei que a adrenalina gerada pela perspectiva de ser violado por um halterofilista anônimo havia me dotado temporariamente de uma força não natural. Na verdade, um frequentador aleatório da academia, ao perceber que eu não teria condições de terminar minha série sem sofrer um acidente fatal, havia oferecido ajuda e era ele quem segurava o peso sobre a minha testa. Em um misto de constrangimento e alívio, verifiquei que “dar um toque” é uma gíria comum no ambiente das academias e que a minha pureza continuava intacta. Fiz uma pausa para recuperar as minhas energias enquanto me perguntava se o dinheiro investido na mensalidade da academia não teria sido melhor empregado em um livro de autoajuda que me fizesse aceitar meu corpo da forma que Deus me deu e do jeito que eu o vinha tratando nos últimos 15 anos.


Mas a tortura em forma de malhação ainda estava longe de terminar.





quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Texto de convidado: Michel Teló... pega aqui no meu cipó (como saber que a música é ruim só de olhar)






Chegamos a um estágio da música brasileira onde não se precisa mais ouvir um determinado cantor/cantora/banda para saber que é uma bosta. Nunca ouvi uma música sequer desse Michel Teló e já tenho absoluta certeza de que é mais uma merda inventada pela mídia e enfiada no rabo dos adolescentes brasileiros que nunca leram um livro que não seja da saga Crepúsculo ou assistiram um filme que não seja American Pie.

Se um artista estoura no nosso país e tem sua música cantada aos quatro ventos, aparece no Domingão do Faustão, na Xuxa e entra no repertório de artistas do naipe de Aviões do Forró, fique longe. Fazem coraçõezinhos com as mãos e vivem sorrindo pra tudo que é câmera? Idiotas manipulados por empresários que querem vender shows, discos e camisetas.

Uma música de qualidade nunca alcançará esse patamar em nosso país. A música boa ficará restrita aos poucos usuários da internet que se propõe a baixá-la e divulgar com os pouquíssimo amigos que tenha bom gosto.
A bosta, por outro lado, é que vai cair na graça do povo.

Luan Santana, Michel Teló. Posso ter ouvido por acaso em algum carrinho de CD pirata, como toque de celular de algum retardado mental ou no mp3 de um dos vários filhos da puta que não usam fone de ouvido nos ônibus. Mas nunca escutei esse povo para julgá-los como artistas, por que não é preciso. Repetindo: já se sabe que é ruim só por fazer sucesso.

Parabéns a todos os envolvidos.







Texto escrito e gentilmente cedido pelo amigo, escritor e jornalista Geraldo de Fraga.


sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O louco II







Era um dos meus últimos dias morando na Boa Vista. Com o sol se pondo nas minhas costas, caminhei pela Rua do Príncipe, passando por livrarias, sebos e editoras, atravessando a Avenida Cruz Cabugá com a Faculdade de Direito do Recife apoiada sobre meu ombro direito. Passei pelo velho edifício da Câmara Municipal do Recife e segui para a Praça 13 de Maio. Sua entrada guardada por esfinges de ferro, rosto de mulher, corpo de águia, olhos mortos vigiando o nada. Me dirigi para a área de exercícios, no fundo do parque, dotada de alças para flexões, barras de ferro para puxadas dorsais e pranchas para abdominais, invariavelmente ocupadas pelos mendigos do centro, mesmo as mais inclinadas. Alguns idosos iniciavam uma partida de dominó em uma das mesas a poucos metros de distância, enquanto crianças corriam na área cimentada, entre cacos de vodca barata e mangas apodrecidas. Comecei a me alongar quando escutei gritos ao longe. Iam se aproximando aos poucos, como se algum animal enlouquecido estivesse por perto. Voltei meu olhar para o pequeno zoológico, de grades enferrujadas e teto caindo aos pedaços, que abrigavam alguns poucos animais dentro do parque. Teria algum deles escapado? Apreensivo, olhei ao meu redor. As crianças pararam a correria e se refugiaram nos colos das suas mães. Os velhos interromperam o jogo, indecisos. Os mendigos estremeceram, levantando-se devagar, como cadáveres que voltam à vida. Novamente o guincho medonho, cada vez mais perto. Naquele canto da praça, cercada por grades de ferro, não havia portões de saída. O barulho pavoroso se repetiu, e agora era possível discernir os gritos de uma mulher. Me abaixei lentamente e peguei um dos cacos de garrafa pelo gargalo. Mais um berro e então estava sobre nós.

Não era bicho. Era gente. Ele andava claudicante, as mãos crispadas eram garras atrofiadas que ele trazia junto ao corpo, como um pássaro de asas partidas, incapaz de voar, mancando pela terra que o separava do seu elemento natural. Os olhos arregalados fitavam os rostos das pessoas sem enxerga-las, o pescoço retorcendo-se em estranhos ângulos. Vestia molambos desproporcionas ao seu tamanho. Uma camisa de propaganda política da década passada, repleta de buracos e manchas não identificáveis, colada ao corpo magro, recobrindo costelas salientes que arfavam a cada novo grito. Uma calça folgada demais, que o fazia tropeçar e evidenciava ainda mais o manquejar grotesco. A mulher ao seu lado era alta, obesa, braços fortes e roliços, escuras manchas de suor nas axilas. Puxava o homem com violência por uma de suas garras. Ele parou por um momento, olhou ao redor e emitiu mais um guincho, longo, agudo, interminável. Senti algo frio na base da minha espinha. Ao findar seu uivo, tentava tomar algo das mãos da mulher que o acompanhava. Ela tirava o objeto de seu alcance e o usava como cassetete para castiga-lo.

- Toma, bicho ruim! Bicho desgraçado! Cala essa boca! Bicho doido! Doido!

O doido se encolhia, desesperado. Urrava pela dor, pela tristeza e pelo hábito. Urrava porque era louco. E porque não sabia fazer qualquer outra coisa.

- Fica quieto, peste! Por que tu não morre logo, heim? Morre! Morre e me deixa em paz! Animal!

Ao redor do louco, os bichos ecoavam seu sofrimento. Araras grasnavam, macacos berravam e gansos batiam suas asas furiosamente. Pareciam querer dizer “O que faz ele aí do lado de fora? Seu lugar é aqui dentro, conosco. Preso, com os outros bichos. Animal!”. As mães agarravam com força seus filhos, os pequenos rostos entre os seios, para que não vissem a passagem do louco, abafando seus ouvidos com as mãos. Um dos idosos, trêmulo, atingiu as peças de dominó com um movimento involuntário do seu braço. As pedras amareladas, feitas de ossos, caíram no chão de cimento com estalos secos. Os mendigos ficaram imóveis, observando, afundando-se em seus trapos imundos. Minha mão fechou-se com mais força sobre o gargalo. Senti o vidro trincando na minha palma e o calor do sangue escorrendo entre os meus dedos cerrados. Cambaleando, o louco seguia a sua via-crúcis pela pista de corrida do parque, sendo açoitado por sua escolta medonha a cada berro de agonia. Aos poucos, desapareceram em uma curva repleta de árvores, os guinchos esmaecendo com a distância. Os animais silenciaram em suas celas. As mães soltaram seus filhos, que voltaram a correr entre vidro partido e frutas podres. O jogo de dominó foi reiniciado, a composição original da partida retomada da melhor forma possível. Os mendigos se dedicavam a fechar os olhos e perseguir os sonhos interrompidos pela passagem do louco. E eu permaneci ali, com a garrafa quebrada na mão.

Eu sangrava e nada mais.


terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Minha avó, minha tia e minha bunda






No Brasil, sair de casa para morar só é um tópico tão polêmico que a família toda costuma dar pitaco. Tudo bem, a parentada vai se meter não importando o assunto, mas sendo esse, a intromissão vem com gosto, embora geralmente bem-intencionada. Eventualmente, minha avó e minha tia descobriram que eu estava morando em um quarto alugado no centro do Recife. Em uma movimentação que só poderia ser definida tecnicamente como “formação de quadrilha”, as duas se juntaram e me chamaram para uma conversa.


Vó: Meu filho! Que história é essa que você fugiu de casa?!

Eu: Vó, pelo amor de Deus! Eu não tenho mais 12 anos de idade! Eu não fugi, decidi não morar mais com meus pais, nada demais.

Tia: E cadê sua esposa? Casou e não avisou a gente? Sua avó e sua tia??

Eu: Tia, nem namorada eu tenho! E precisa casar pra sair de casa?

Vó: Precisa.

Tia: Precisa.

Eu: Certo...vejam bem...eu não sou um menino. Sou um homem. Até cabelo branco eu tenho e...

Vó: Ah, mas eu acho um charme! Né, Graça?

Tia: Ah, é! Muito! Parece aquele rapaz, o José Mayer.

Eu: ...ok. Brigado às duas. José Mayer. Rapaz. Tá bom. Sim, continuando. Eu preciso do meu espaço, entendem? Isso é natural.

Tia: Mas você precisava ir morar em um antro? E justo na Boa Vista?

Eu: Não é um antro, tia. É a casa de uma senhora, que aluga quartos a preços módicos. É temporário. E a Boa Vista é um bairro ótimo, central, ônibus para qualquer lugar, tem shopping, mercado público, parque e é um dos poucos lugares da cidade que vende kebab.

Vó: Meu Deus, já está se drogando! Graça, ligue para o pai dele!

Eu: Drog...vó, isso é uma comida árabe! Tia, dá pra colocar o fone de volta no gancho? Brigado. Olhem, não é tão ruim quanto parece. Tenho meu quarto, uma cama, um guarda-roupa de uma porta e...bem, basicamente é isso mesmo. Tem até uma janela. Pena que não abre. Só preciso lembrar de nunca acender nenhum tipo de fogo dentro do quarto. Tranquilo.

Tia: Meu filho, tem geladeira?

Eu: Tem. No quintal. É compartilhada. Mas tudo bem. Minha comida é toda etiquetada. Os vizinhos quase sempre respeitam. Só bebem meu achocolatado, mas aí também era pedir demais deles, né?

Vó: Sei. E o banheiro?

Eu: Também é compartilhado. Eu uso e mais uns 4 caras também e...

Vó: Jesus, Maria e José, banheiro compartilhado?!

Eu: Hmm. Vó, eu sei que não é o ideal, mas...

Vó: Você vai pegar alguma doença e MORRER! Graça, fale pra ele!


Minha tia Graça é médica e cuidou de absolutamente todos da família a vida toda. A abnegação em pessoa, de vez em quando ainda dava uma força para as mães da família colocando medo na pirralhada com fundamentações pseudo-clínicas. Até o começo da minha vida adulta eu ainda acreditava piamente que comer e ler ao mesmo tempo faria meus globos oculares caírem, que engolir chiclete faria meu estômago implodir e que deixar o chinelo virado de cabeça para baixo, especialmente no meio da sala, era amputação certa dos membros inferiores.


Tia: É verdade. Você não sabe a procedência do povo que usa esse banheiro.

Eu: Mas, tia. Que exagero, né? O que poderia acontecer?

Tia: Você pode pegar uma doença. Venérea.

Eu: Oi?

Tia: PELA BUNDA!

Eu: Gaaaaaaaaaaaaaaaah!


Agora a coisa tinha ficado séria. A perspectiva de contrair uma doença sexualmente transmissível, através de um homem desconhecido, pelo rabo ainda por cima, era mais do que eu podia suportar. Logo eu, que sempre me orgulhei de nunca ter adquirido nem mesmo uma irritação na virilha. Se minha tia estivesse falando a verdade e eu acabasse doente, quem ia acreditar que a culpa tinha sido de uma privada promíscua e de condições de higiene terceiro-mundistas?


Vó: Viu? Viu?! Não disse?

Tia: Meu filho, você tem que pensar bem nisso!

Eu: Eu penso! Penso na minha bunda todos os dias!

Vó: Pois é, sua tia e eu também!

Eu: Na minha bunda ou...esquece. Imagens horrendas na minha mente. Agora minha cabeça começou a doer. Acho que eu preciso deitar.

Vó: Tá passando mal?

Tia: Tá sentindo algo na bunda?


Minha bunda, felizmente, continuava intacta. Pouco tempo depois, consegui uma quitinete e pude sair do quarto.

Mas aí já é outra história.


quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Um quarto de vida, parte III






É fácil perder o foco nas pequenas coisas quando não existe ninguém cuidando de você. Banalidades tais como exercícios físicos regulares, higiene pessoal e uma alimentação minimamente sadia, por exemplo. E em um lugar onde a única cozinha é menor do que um guarda-roupa de uma porta, a geladeira é compartilhada entre nove pessoas e o fogão só serve de mesa para um fogareiro enferrujado de duas bocas, é preciso ser criativo na hora de comer. Uma opção é fazer as refeições fora de casa. O problema é que, além de ser uma alternativa bastante onerosa, é necessário ser tolerante com a qualidade dos alimentos servidos nas ruas do centro do Recife. Entre tapiocas de 50 centavos, acarajés baianos e pernambucanos, manuê, cocada, batata-frita, espetinho, cachorro-quente, churros, pipoca e aquela coisa sem nome que a tia da esquina vende, mas que de vez em quando foge correndo pela Avenida Boa Vista, a gente acaba consumindo um número alarmante de comidas suspeitas.

De maneira que é melhor se virar em casa mesmo. Pensei em uma dieta baseada inteiramente em Doritos e lavagens estomacais, mas a minha mãe me convenceu a comprar bananas. “Tem potássio”, garantiu ela, um tanto incerta quanto aos benefícios trazidos por esse nutriente em particular. Achei que uma palma duraria bastante tempo. O calor abafado do quarto, semelhante ao sovaco de um estivador do Cais de Santa Rita, se encarregou de amadurecer em pouco tempo uma dúzia de bananas verdes como o lodo que se acumula no quintal da pensão. Já no segundo dia elas adquiriram uma estranha cor amarronzada, com manchas negras se espalhando como um câncer vegetal. Malhadas, pareciam mais vaquinhas amarelas se amontoando no canto do balcão. Pareciam tremer levemente. No terceiro dia, as bananas começaram a se mover muito lentamente, rolando pelo chão em minha direção e emitindo pequenos suspiros arrastados sempre que eu entrava no quarto. Finalmente, no quarto dia, atingiram consciência própria. Hoje, eu só vou dormir depois de conversar com as minhas bananinhas falantes. Batizei cada uma com o nome de uma ex-namorada. Dona Mema, cujo quarto fica bem ao lado do meu, uma vez me perguntou com quem eu tanto conversava no celular. “Alguma paquera?”, perguntou ela com um sorriso banguela repuxando o rosto marcado. Expliquei a ela a minha relação com as bananas. Hoje, Dona Mema não responde mais o meu “bom-dia” de manhã cedo, mas em compensação também não pede mais para eu diminuir o volume do computador à noite.

A água potável também é uma preocupação constante. Dia desses pedi um garrafão pelo telefone e, confiando no tradicional atraso da entrega, fui tomar banho. No meio da chuveirada, escutei a voz incerta da senhoria, através da janela do banheiro, me avisando que o homem da água já havia chegado. Amaldiçoando a pontualidade dos entregadores do Centro, decidi interromper o banho para receber a mineral e pagar o homem. Foi então que eu percebi que havia esquecido a toalha. Do lado de fora, pendurada no pequeno quintal que separa meu quarto do resto da pensão. Soltei um rápido “Sossega o bigode que eu já tô indo!” pela janela e, como um ninja desprovido de equipamento, roupas e qualquer senso de moralidade, passei rapidamente do banheiro para o quarto, deixando um rastro de pegadas úmidas no corredor. O varal ficava bem perto da porta. Como eu havia pedido para o entregador me esperar, calculei que poderia sair, agarrar a toalha e voltar, com tempo suficiente para me enxugar e vestir uma roupa. Decidido, abri a porta, saí do quarto e estiquei a mão em direção ao varal, tudo em menos de um segundo. E foi nesse instante que escutei uma voz grave.

- Moço, é pra deixar a água aqui mesmo?

Lá estava o entregador, que havia decidido ser não apenas pontual, mas também prestativo, levando a água até a minha porta. Fiquei congelado onde eu estava, os pés plantados no cimento grosseiro do quintal, a mão estendida como uma garra apontada para a toalha, a bilola balançando suavemente ao sabor da brisa da Boa Vista. O pobre trabalhador me olhou com olhos tristes e experientes, de quem até já havia visto coisa pior no exercício diário da profissão, mas cujos anos ainda não haviam embrutecido seu espírito ao ponto de naturalizar o bizarro espetáculo que se desenrolava bem na sua frente. O homem, a agonia patente na voz, evitava contato visual com meus olhos, genitália e a minha presença nesse plano físico de maneira geral. Parecia se dirigir a uma telha meio solta no beiral da casa.

- Moço, olhe...se quiser, pode pagar depois, viu? Aliás, essa eu deixo por conta da casa, certo? Certo? Certo, né?

Depositou o garrafão no chão, girou sobre os calcanhares e, muito digno, despediu-se com um toque no boné da empresa. Saindo do transe de terror e vergonha, suspirei fundo, recolhi a encomenda e segui cabisbaixo para o quarto.

Teria que procurar o telefone de outra entrega de água mineral. De novo.


sábado, 10 de dezembro de 2011

Um quarto de vida, parte II






Para se sobreviver em um quarto alugado é preciso organização, o tempo todo. Qualquer coisa fora do lugar consome um espaço precioso, que poderia ser utilizado para acondicionar uma cadeira, um botijão de água mineral ou um pouco mais de oxigênio. Depois de pendurar tudo o que é possível nas paredes, você começa a olhar para o teto se lastimando por toda aquela área desperdiçada apenas com uma mísera lâmpada. O chão já não é mais visível, devido ao excesso de tranqueiras espalhadas no assoalho, cuja cor eu já nem lembro mais qual é. Para chegar até a cama, é preciso pular da porta e já cair de banho tomado. Leva algum tempo para adquirir a prática. Felizmente, o quarto não é mal-assombrado, mas por pura falta de espaço. Se algum poltergeist decidir se instalar aqui, vai ter que dividir o aluguel comigo. E dormir dentro do meu nécessaire. Sim, eu tenho um nécessaire. Quando é preciso carregar todos os seus itens de higiene a cada visita ao banheiro, é preciso ter um. O meu é preto com cinza, à prova d’água, vem com um barbeador e não pede informação no meio da rua. Ou seja, é coisa de macho.

Por falar em macho, o quarto ao lado abriga três. Três. É difícil ter a exata noção do apocalipse que se passa ali dentro. Uma vez eu dei uma olhada, de relance, quando esqueceram a porta entreaberta. Metade dos meus cabelos embranqueceu instantaneamente. A outra metade caiu. Tive a impressão de ter vislumbrado cascatas de papel higiênico usado brotando da lâmpada e tenho quase certeza de que escutei um barulho semelhante ao de uma porca parindo. Mas pode ter sido apenas a minha imaginação. É com esse pessoal, aliás, que eu divido o banheiro. A angústia inicial de compartilhar um cômodo tão íntimo com estranhos foi substituída pela resignação e por muito álcool gel, além da saudade constante de um WC que não seja frequentado por silvícolas urbanos. Dia desses, ao entrar no toalete do curso de francês, quase chorei de felicidade. Abri a porta e ouvi as vozes de milhares de anjos cantando. Uma luz divina emanava daquele vaso sanitário, me convidando. Parecia dizer “Fred, sua busca terminou. Arreie as calças e se entregue ao Divino!”. Nem estava com vontade, mas não perderia a oportunidade de descansar as nádegas em um verdadeiro trono de limpeza. Regiamente instalado, me permiti refletir acerca da miserável condição humana e cheguei a uma conclusão.

Possuir um Lar é ter uma privada para chamar de sua.



domingo, 4 de dezembro de 2011

Um quarto de vida





Depois de décadas de uma vida totalmente diferente do que se vê nos seriados e filmes americanos, a gente finalmente dá um freio na meninice e resolve que já deu, hora de pegar o beco, dar o pinote, sair da casa dos pais. O sonho americano e cinematográfico nos traz jovens bonitos e talentosos, se divertindo enquanto fazem um bico na lanchonete estilosa da esquina ao mesmo tempo em que conseguem pagar um apartamento digno, bem localizado e decorado com bom gosto, tudo isso enquanto perseguem incansavelmente seus sonhos de sucesso, pontuados por alguns leves e bem-humorados percalços.

Na realidade brasileira, a coisa é um pouco diferente. Permanecemos, por comodismo, tradição, medo ou pura falta de grana, sob as asas dos progenitores, sejam elas acolhedoras ou simplesmente resignadas. Sai-se de casa quando se casa, mais ou menos como diz o ditado. Muitas vezes, os casais vão se arrumando na casa dos pais, sogros ou até procuram seu próprio espaço por um tempo, voltando assim que a realidade golpeia com mais força. Uma combinação de baixos salários iniciais, apreensão quanto ao futuro, mercado imobiliário selvagem e pressão familiar prende os jovens brasileiros aos seus pais por tempo indeterminado, mesmo que essa mistura não dê liga. E, convenhamos, mesmo quando dá, a verdade é que convivência, especialmente entre parentes, possui prazo de validade.

Alugar um quarto na casa dos outros é uma experiência esquisita. Mas foi a opção mais viável que tive quando decidi, já bastante tardiamente, abandonar o ninho. Encontrei uma casa no tradicional bairro da Boa Vista, em uma rua tranquila, arborizada e de ladrilhos. A casa em si já viu dias melhores. O portão quebrado range ameaçadoramente para o visitante que ousar adentrar o jardim de plantas mortas, enquanto a brisa traz uma garoa fina de tinta descascada. Os hóspedes ficam no quintal, onde há um pátio e duas mangueiras. As árvores, quer dizer. Meu quarto fica ao lado de onde a proprietária, vamos chama-la de Dona Mema, reside com as filhas e duas cachorras, que latem furiosamente quando sentem a aproximação de qualquer estranho, animal, brisa suspeita ou espírito desencarnado. As cachorras, quer dizer, não as filhas.


- Mas Dona Mema, eu argumentava, olhando apreensivo para os cães que rugiam próximos da grade do terraço, a senhora acha uma boa ideia elas ficarem soltas assim?

- Não tem problema. Já já acostuma.

- Sei. Então, elas não avançam, né?

- Avançar, elas avançam, explicava Dona Mema calmamente, entre uma baforada e outra do seu cigarro barato, porém suficientemente blasé, mas se isso acontecer, pode pegar um cabo de vassoura e danar nelas.

- A...senhora deixa uma vassoura aqui no quintal pra isso?

- Não. Cada hóspede traz sua própria vassoura.


Uma vassoura de cabo resistente foi umas das minhas primeiras aquisições, mas eu insistia comigo mesmo que ela só seria necessária para limpar o quarto ou para descansar como um morcego atrás da porta, em dia de visitas indesejáveis. Por via das dúvidas, ando com ela para cima e para baixo e as pessoas pensam que eu ajudo a pagar o aluguel varrendo o quintal. Há apenas uma geladeira para todos os nove condôminos, de maneira que as compras de todos se misturam promiscuamente nas prateleiras refrigeradas. Pelo sim, pelo não, etiquetei as minhas, escrevendo meu nome e adicionando uma carinha feliz, no intuito de assaltar a consciência do desgraçado que considerasse roubar a minha pouca comida. Só havia encontrado etiquetas festivas e pensei seriamente se, ao marcar meu leite achocolatado com um “PARABÉNS PARA VOCÊ”, eu não estaria encorajando a vizinhança a levar as mercadorias como se fosse presente mesmo. Adotei o terrível e compulsivo hábito de contar quantas salsichas restam na embalagem antes de dormir.

Morar em um quarto alugado, como eu já falei, é uma experiência estranha, mas ao mesmo tempo libertadora. É preciso transcender certos hábitos e quebrar paradigmas cultivados durante anos de vida familiar. E para isso, não há nada melhor do que compartilhar um banheiro com mais dois estranhos. Todos os quartos possuem duas portas, uma que se abre para o quintal e outra para o corredor onde fica o banheiro. Um desses antigos, espaçosos, pé-direito alto e um empoeirado e anacrônico bidé. O armarinho não possui espelho e é preciso se arrumar no tato. Em um canto da parede de azulejos, fragmentos rasgados de frases de autoajuda, declarando que é preciso “amar a si próprio” e garantindo que “o sucesso virá”. A água do chuveiro é fraquinha, preguiçosa, não merece ser chamada de ducha. Um balcão de louça verde paira sobre a pequena pia, uma opção hidráulica infeliz que obriga quem for escovar os dentes a praticar cuspe à distância. E há uma privada. Dividida entre mais duas outras bundas, junto com os seres humanos que as acompanham, embora eu nunca os tenha visto e esteja supondo que existam, guiado pelo bom-senso e pelo que recordo das aulas de Biologia do Ensino Médio. É praticamente impossível olhar para o assento da privada sem pensar em todos os glúteos que passaram e passam por ali. Traseiros suados, peludos, tatuados, asseados, com espinhas, marcas de mordidas, manchas de batom. Sempre levo meu detergente para o banheiro comigo.

Às vezes, a Internet não funciona. Às vezes, a água para de correr. Às vezes, falta luz.


- É essa Católica aí do lado, explica Dona Mema, compenetradíssima. Usam energia demais, estouram o gerador, sobra pra gente aqui.

- E aí, o que a gente faz nessas horas?

- Compre logo fósforos e velas. Muitas. Acena uma quando faltar energia e aproveite, segue ela, dando um trago demorado no cigarro amassado, para rezar, que só faz bem.


A Rua do Lazer, reunindo estudantes da Universidade Católica, é um bem-vindo sopro de vida e movimento praticamente na esquina da casa. Há carros bem polidos, importados, guardados por flanelinhas zelosos, que parecem brotar do rejunte que separa os paralelepípedos da rua. Há rapazes de cabelo liso e camisa polo tomando cerveja para embriagar o tempo. Há meninas de salto alto e bochechas vermelhas se alimentando de olhares. A casa vizinha é uma academia de artes marciais, apregoando o ensino de uma infinidade de estilos de luta com nomes exóticos. O desenho de um samurai, espada em punho sobre um fundo vermelho, parece vigiar a rua, procurando sua honra perdida de ronin estático, uma gárgula oriental ignorada pelos marginais que perambulam pelas redondezas de madrugada. Á noite, se transfigura em bar, com mesas na calçada e música brega vertida aos borbotões de caixas de som empoleiradas no muro rachado. Saio sem bater o portão e perco alguns momentos me reorientando. O mar já não fica mais para o mesmo lado, parece. Decido por um caminho e olho para trás, para a casa que não é minha casa, nem dos hóspedes passageiros, nem mesmo de Dona Mema e suas cachorras. É uma espécie de sala de espera, um purgatório para os que não têm um lar, mas almejam construir um logo. Uma casa temporária, que existe apenas quando lá habitam pessoas. É onde eu moro e agora é minha casa também.

Por enquanto.