sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Dentista, parte I





Nunca gostei de ir ao dentista. A odontologia é umas das últimas especialidades da Saúde que continua contando com métodos e equipamentos simplesmente medievais. Precisa arrancar um dente, amigão? Não tem laser que vá fazer isso de uma forma indolor ou que não envolva você cuspindo uma quantidade assustadora de sangue como se fosse um boxeador em fim de carreira. Pediatras basicamente aprendem a manejar inofensivos estetoscópios e Dermatologistas não necessitam de mais do que traquejo com algumas pomadas ou, no máximo, um elegante bisturi elétrico para remoção de verrugas anais. Por Deus, até mesmo um Proctologista precisa apenas de uma luva resistente, um pouco de vaselina e pacientes compreensivos para poder realizar seu trabalho.



"Dr., o senhor pode...pode ao menos tirar esse anel...?"


Dentistas se armam, literalmente, com arsenais compostos de brocas cujo som é capaz de fazer os testículos de um homem sadio se recolherem institivamente no seu abdômen, ganchos cujo único propósito é fazer os pacientes borrarem as calças ante a sua visão horrenda, pinças capazes de extrair um dente ainda que a raiz dele esteja fincada na sua alma e lixas motorizadas que não pareceriam deslocadas no armário de um serial killer. E enquanto você está preso na poltrona do terror, cego por uma luz alienígena e lutando contra o instinto de se jogar pela janela ao ouvir o som da perfuratriz em miniatura, o dentista, sádico, ainda conta piada. Nada melhor do que ouvir a última do papagaio enquanto se engasga com o próprio sangue. E quem é maluco de não achar graça da piada de uma pessoa que tem uma agulha da grossura do seu dedo mindinho apontada para os nervos expostos do seu molar?



"GAAAAAAAAAHHHHHHH!"



Tenho medo de Dentistas. Não tenho vergonha de falar, só mantenho a voz baixa com medo de um deles ouvir e vir tomar satisfações munido de um boticão. Além disso, como uma espécie de Pokemons saídos do inferno, os Dentistas também possuem sua própria e terrível evolução: o Ortodontista. Um profissional que, não satisfeito em nos causar inenarrável dor física e angústia mental, ainda rouba nossa dignidade através de tratamentos humilhantes e, como qualquer paciente pode testemunhar, infindáveis. Apenas aqueles que sofreram nas mãos dessa entidade maléfica podem compreender os traumas indizíveis que deixam cicatrizes indeléveis nas gengivas e nos espíritos de milhares de pessoas mundo afora.

E eu, claro, sou uma delas.



Continua...

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Vovó e a chuva





Uma das maiores características dos idosos é o apego aos hábitos. O que para os mais jovens pode parecer teimosia senil, para os velhinhos é apenas uma maneira de se ancorar mais firmemente em uma existência que muda mais rapidamente do que eles conseguem acompanhar com suas bengalas. E por estarem cada vez mais perto do último jogo de dominó de suas vidas, nada mais natural do que cultivar e persistir em cuidados supostamente saudáveis, mas que não possuem o menor fundamento científico. A minha avó, por exemplo, morre de medo de chuva. Para ela, qualquer precipitação é um prenúncio do juízo final, onde o combate final da humanidade será travado contra as doenças que, aparentemente, permanecem incubadas em nuvens de tempestade, aguardando pacientemente o momento certo de despejar sua carga mortífera sobre os despreparados transeuntes, sem diferenciar os ímpios dos seus netos. Para vovó, as dez pragas do Egito foram um verdadeiro mamão com açúcar. Afinal, no deserto não chove. No final das contas, todos os problemas possíveis e, principalmente, os imagináveis, acabavam sendo atribuídos à chuva, verdadeiro vetor do Armagedom. Gripe? Chuva. Alergia? Chuva. Dor de cabeça? Chuva. Fratura exposta? Chuva. Câncer no reto? Chuva. Queda da Bovespa? Chuva. Apocalipse zumbi? Tente adivinhar. 



"Vó, tem vitamina C?"



No raciocínio de vovó, as chances de se sobreviver a uma chuvarada são mais ou menos proporcionais à possibilidade de se dar bem nessa vida sem ser médico, advogado ou engenheiro. Quando vou passar o final de semana com ela e sou pego pela rápida e inofensiva garoa do verão recifense, costumo surpreendê-la em seu quarto, já separando suas roupas pretas.


- Meu filho, veio correndo? Tá todo suado, meu Deus...

- Não, vó, isso é chuva mesmo.

Os olhos da minha avó são tomados por um terror ancestral. Ela me encara como se houvesse um cadáver em avançado estado de decomposição na sua frente.

- Chuva? Minha nossa senhora!

- Que foi?

- Deixe eu ligar logo pra sua tia, que é médica.

- Oxe! Só por causa de uma chuvinha nas costas?

- Um macho vinha nas costas? E você acha pouco? Vou ligar pro padre também! Que desgosto, meu neto, com esses vícios...não foi assim que eu te criei! - Indignou-se minha avó, cuja audição já não era mais como antigamente.

- Não foi a senhora que me criou, foram os meus pais!

- Está explicado então.  – sentenciou a matriarca, dando o assunto por encerrado e a discussão como vencida.

- Vó! Eu não sou gay! E nem vou morrer por causa de uma chuva! Eu...vó, para de me olhar assim, já disse que eu não sou gay!

- Não vou arriscar. Fique aí que sua tia já chega. Aliás, além do padre, vou chamar um pastor e um pai de santo pra ver se dão jeito nesse seu outro...problema. No desespero, é melhor ser ecumênico. – resignou-se a anciã, católica fervorosa.

- Mas vov...

- Calado. Aqui quem manda sou eu. Vá para o quarto, tome remédio, reze dez pais-nossos e não se atreva a vestir as roupas das suas primas.

- ...

- Já já eu chego com sua vitamina de abacate.


Só para garantir, tive que dormir isolado no quarto de empregada. Quarentena da vovó.