sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O louco II







Era um dos meus últimos dias morando na Boa Vista. Com o sol se pondo nas minhas costas, caminhei pela Rua do Príncipe, passando por livrarias, sebos e editoras, atravessando a Avenida Cruz Cabugá com a Faculdade de Direito do Recife apoiada sobre meu ombro direito. Passei pelo velho edifício da Câmara Municipal do Recife e segui para a Praça 13 de Maio. Sua entrada guardada por esfinges de ferro, rosto de mulher, corpo de águia, olhos mortos vigiando o nada. Me dirigi para a área de exercícios, no fundo do parque, dotada de alças para flexões, barras de ferro para puxadas dorsais e pranchas para abdominais, invariavelmente ocupadas pelos mendigos do centro, mesmo as mais inclinadas. Alguns idosos iniciavam uma partida de dominó em uma das mesas a poucos metros de distância, enquanto crianças corriam na área cimentada, entre cacos de vodca barata e mangas apodrecidas. Comecei a me alongar quando escutei gritos ao longe. Iam se aproximando aos poucos, como se algum animal enlouquecido estivesse por perto. Voltei meu olhar para o pequeno zoológico, de grades enferrujadas e teto caindo aos pedaços, que abrigavam alguns poucos animais dentro do parque. Teria algum deles escapado? Apreensivo, olhei ao meu redor. As crianças pararam a correria e se refugiaram nos colos das suas mães. Os velhos interromperam o jogo, indecisos. Os mendigos estremeceram, levantando-se devagar, como cadáveres que voltam à vida. Novamente o guincho medonho, cada vez mais perto. Naquele canto da praça, cercada por grades de ferro, não havia portões de saída. O barulho pavoroso se repetiu, e agora era possível discernir os gritos de uma mulher. Me abaixei lentamente e peguei um dos cacos de garrafa pelo gargalo. Mais um berro e então estava sobre nós.

Não era bicho. Era gente. Ele andava claudicante, as mãos crispadas eram garras atrofiadas que ele trazia junto ao corpo, como um pássaro de asas partidas, incapaz de voar, mancando pela terra que o separava do seu elemento natural. Os olhos arregalados fitavam os rostos das pessoas sem enxerga-las, o pescoço retorcendo-se em estranhos ângulos. Vestia molambos desproporcionas ao seu tamanho. Uma camisa de propaganda política da década passada, repleta de buracos e manchas não identificáveis, colada ao corpo magro, recobrindo costelas salientes que arfavam a cada novo grito. Uma calça folgada demais, que o fazia tropeçar e evidenciava ainda mais o manquejar grotesco. A mulher ao seu lado era alta, obesa, braços fortes e roliços, escuras manchas de suor nas axilas. Puxava o homem com violência por uma de suas garras. Ele parou por um momento, olhou ao redor e emitiu mais um guincho, longo, agudo, interminável. Senti algo frio na base da minha espinha. Ao findar seu uivo, tentava tomar algo das mãos da mulher que o acompanhava. Ela tirava o objeto de seu alcance e o usava como cassetete para castiga-lo.

- Toma, bicho ruim! Bicho desgraçado! Cala essa boca! Bicho doido! Doido!

O doido se encolhia, desesperado. Urrava pela dor, pela tristeza e pelo hábito. Urrava porque era louco. E porque não sabia fazer qualquer outra coisa.

- Fica quieto, peste! Por que tu não morre logo, heim? Morre! Morre e me deixa em paz! Animal!

Ao redor do louco, os bichos ecoavam seu sofrimento. Araras grasnavam, macacos berravam e gansos batiam suas asas furiosamente. Pareciam querer dizer “O que faz ele aí do lado de fora? Seu lugar é aqui dentro, conosco. Preso, com os outros bichos. Animal!”. As mães agarravam com força seus filhos, os pequenos rostos entre os seios, para que não vissem a passagem do louco, abafando seus ouvidos com as mãos. Um dos idosos, trêmulo, atingiu as peças de dominó com um movimento involuntário do seu braço. As pedras amareladas, feitas de ossos, caíram no chão de cimento com estalos secos. Os mendigos ficaram imóveis, observando, afundando-se em seus trapos imundos. Minha mão fechou-se com mais força sobre o gargalo. Senti o vidro trincando na minha palma e o calor do sangue escorrendo entre os meus dedos cerrados. Cambaleando, o louco seguia a sua via-crúcis pela pista de corrida do parque, sendo açoitado por sua escolta medonha a cada berro de agonia. Aos poucos, desapareceram em uma curva repleta de árvores, os guinchos esmaecendo com a distância. Os animais silenciaram em suas celas. As mães soltaram seus filhos, que voltaram a correr entre vidro partido e frutas podres. O jogo de dominó foi reiniciado, a composição original da partida retomada da melhor forma possível. Os mendigos se dedicavam a fechar os olhos e perseguir os sonhos interrompidos pela passagem do louco. E eu permaneci ali, com a garrafa quebrada na mão.

Eu sangrava e nada mais.


terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Minha avó, minha tia e minha bunda






No Brasil, sair de casa para morar só é um tópico tão polêmico que a família toda costuma dar pitaco. Tudo bem, a parentada vai se meter não importando o assunto, mas sendo esse, a intromissão vem com gosto, embora geralmente bem-intencionada. Eventualmente, minha avó e minha tia descobriram que eu estava morando em um quarto alugado no centro do Recife. Em uma movimentação que só poderia ser definida tecnicamente como “formação de quadrilha”, as duas se juntaram e me chamaram para uma conversa.


Vó: Meu filho! Que história é essa que você fugiu de casa?!

Eu: Vó, pelo amor de Deus! Eu não tenho mais 12 anos de idade! Eu não fugi, decidi não morar mais com meus pais, nada demais.

Tia: E cadê sua esposa? Casou e não avisou a gente? Sua avó e sua tia??

Eu: Tia, nem namorada eu tenho! E precisa casar pra sair de casa?

Vó: Precisa.

Tia: Precisa.

Eu: Certo...vejam bem...eu não sou um menino. Sou um homem. Até cabelo branco eu tenho e...

Vó: Ah, mas eu acho um charme! Né, Graça?

Tia: Ah, é! Muito! Parece aquele rapaz, o José Mayer.

Eu: ...ok. Brigado às duas. José Mayer. Rapaz. Tá bom. Sim, continuando. Eu preciso do meu espaço, entendem? Isso é natural.

Tia: Mas você precisava ir morar em um antro? E justo na Boa Vista?

Eu: Não é um antro, tia. É a casa de uma senhora, que aluga quartos a preços módicos. É temporário. E a Boa Vista é um bairro ótimo, central, ônibus para qualquer lugar, tem shopping, mercado público, parque e é um dos poucos lugares da cidade que vende kebab.

Vó: Meu Deus, já está se drogando! Graça, ligue para o pai dele!

Eu: Drog...vó, isso é uma comida árabe! Tia, dá pra colocar o fone de volta no gancho? Brigado. Olhem, não é tão ruim quanto parece. Tenho meu quarto, uma cama, um guarda-roupa de uma porta e...bem, basicamente é isso mesmo. Tem até uma janela. Pena que não abre. Só preciso lembrar de nunca acender nenhum tipo de fogo dentro do quarto. Tranquilo.

Tia: Meu filho, tem geladeira?

Eu: Tem. No quintal. É compartilhada. Mas tudo bem. Minha comida é toda etiquetada. Os vizinhos quase sempre respeitam. Só bebem meu achocolatado, mas aí também era pedir demais deles, né?

Vó: Sei. E o banheiro?

Eu: Também é compartilhado. Eu uso e mais uns 4 caras também e...

Vó: Jesus, Maria e José, banheiro compartilhado?!

Eu: Hmm. Vó, eu sei que não é o ideal, mas...

Vó: Você vai pegar alguma doença e MORRER! Graça, fale pra ele!


Minha tia Graça é médica e cuidou de absolutamente todos da família a vida toda. A abnegação em pessoa, de vez em quando ainda dava uma força para as mães da família colocando medo na pirralhada com fundamentações pseudo-clínicas. Até o começo da minha vida adulta eu ainda acreditava piamente que comer e ler ao mesmo tempo faria meus globos oculares caírem, que engolir chiclete faria meu estômago implodir e que deixar o chinelo virado de cabeça para baixo, especialmente no meio da sala, era amputação certa dos membros inferiores.


Tia: É verdade. Você não sabe a procedência do povo que usa esse banheiro.

Eu: Mas, tia. Que exagero, né? O que poderia acontecer?

Tia: Você pode pegar uma doença. Venérea.

Eu: Oi?

Tia: PELA BUNDA!

Eu: Gaaaaaaaaaaaaaaaah!


Agora a coisa tinha ficado séria. A perspectiva de contrair uma doença sexualmente transmissível, através de um homem desconhecido, pelo rabo ainda por cima, era mais do que eu podia suportar. Logo eu, que sempre me orgulhei de nunca ter adquirido nem mesmo uma irritação na virilha. Se minha tia estivesse falando a verdade e eu acabasse doente, quem ia acreditar que a culpa tinha sido de uma privada promíscua e de condições de higiene terceiro-mundistas?


Vó: Viu? Viu?! Não disse?

Tia: Meu filho, você tem que pensar bem nisso!

Eu: Eu penso! Penso na minha bunda todos os dias!

Vó: Pois é, sua tia e eu também!

Eu: Na minha bunda ou...esquece. Imagens horrendas na minha mente. Agora minha cabeça começou a doer. Acho que eu preciso deitar.

Vó: Tá passando mal?

Tia: Tá sentindo algo na bunda?


Minha bunda, felizmente, continuava intacta. Pouco tempo depois, consegui uma quitinete e pude sair do quarto.

Mas aí já é outra história.