quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Dia das Crianças III

Tá, eu sei que o Dia das crianças já passou e esse post está meio atrasado. Mas eu precisava compartilhar mais algumas histórias de infância com vocês, por isso, aproveitem a parte final desse especial e lembrem-se: trauma de infância não existe, você que inventou de fazer terapia.



Uma vez, eu estava assistindo TV com meus dois irmãos, na sala, quando eles começaram a brigar por nenhum motivo em particular. Estavam eles rolando pelo chão, enquanto eu via Uni fuder a vida do pessoal de Caverna do Dragão pela centésima vez, quando meu pai apareceu, irado com a gritaria. Bateu no meu irmão mais velho e depois no caçula. 

E depois em mim, só porque eu estava por perto. Depois de fofar os três meninos no pau, inclusive o inocente, saiu da sala muito digno, declarando que havia batido nos três “para não ser injusto com ninguém”.

Valeu, pai.

***

Por algum motivo, talvez por ser o filho do meio, eu acabava ganhando as porcarias usadas dos meus irmãos, mesmo do mais novo. Quando isso não acontecia, meu pai comprava as porcarias usadas de outras crianças e me dava, como se fosse um presentão. Como não ganhar nada é ainda pior do que ganhar trastes de segunda mão eu aceitava, até porque era muito pequeno e não tinha lá muita escolha. 



  Mas esse balão é meu! E os suspensórios também!




Um exemplo disso foi quando ganhei uma bicicleta resgatada de algum lixão de Paulista. Ela era velha, feia e o simples ato de olhar para ela exigia uma antitetânica. 




 Eu estava muito mais seguro no meu velocípede.
 E mais estiloso também



Mas era minha e era com ela que eu desbravava as ruas enlameadas do Janga, geralmente acompanhado dos outros moleques do bairro, ao menos aqueles que não tinham vergonha de ser vistos com um menino que pilotava uma bicicleta que mais parecia um esqueleto de camelo composto quase que inteiramente de ferrugem. Lógico que um veículo nessas condições não suportaria o eterno off-road das vias não-pavimentadas do Janga, de modo que um dia a bicicleta simplesmente partiu ao meio. Enquanto eu estava em cima dela, claro. O que fez com que eu me esborrachasse no chão, caindo mais ou menos de dente no cascalho e me esfolando quase que completamente. Devolvi a magrela para o meu pai que, muito sério, disse que ia dar um jeito de vez nesse problema. No outro dia, acordo cedo e ele avisa que tem uma surpresa me esperando na garagem. Feliz da vida, saio correndo esperando encontrar uma Caloi Cross novinha em folha.

Ao chegar na garagem, percebo que fui cruelmente enganado.

Lá está a velha bicicleta, recém-soldada, zombando das minhas expectativas infantis. Coagido a dar uma volta de teste, embarco meio receoso e saio mais uma vez pelas ruas, testando os limites da bicicleta e de minha própria integridade física. Depois de alguns minutos, começo a pegar confiança e imprimir mais velocidade, achando que, afinal, talvez não fosse uma bike tão ruim assim.

Até que ela se partiu de novo. Em dois pontos diferentes.

Caí na lama feito um boneco de pano, tão retorcido quanto a bicicleta ao meu lado. Ela estava tão desconjuntada que a única coisa que impedia que ela se separasse em três pedaços independentes era a corrente do pedal. Indignado, decidi que havia chegado ao limite da minha paciência infantil, dobrei a bicicleta como se fosse uma peça de roupa, coloquei embaixo do braço e a entreguei de volta ao meu pai. 

Nunca mais ganhei outra depois dessa, meu pai certamente achando que era muita frescura querer uma bicicleta que estivesse tipo assim, inteira, com tanta criancinha passando fome na África.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Dia das Crianças II

Quem não tem história para contar é porque não viveu. E talvez também porque não passou por traumas horríveis que desfiguraram a mente e deixaram marcas na alma, mas tudo é uma questão de opinião. Para o deleite dos leitores mais sádicos, segue abaixo algumas pequenas histórias da minha infância, do tamanho do seu protagonista na época em que aconteceram. Mas fica um aviso: são contos cheios de violência, terror, morte, nudez, sexo e insinuações de sodomia envolvendo animais relutantes, ferramentas de corte e costura e anões albinos. Sempre eles.



Venham todos!


***

Lembro como se fosse ontem. Estava voltando da praia com meus pais e atravessando uma avenida bastante movimentada. Quase do outro lado da via, percebi que havia deixado cair um brinquedo, talvez um indefeso patinho de borracha, logo no início da travessia. Com a confiança que apenas as crianças possuem, me soltei das mãos dos meus pais e saí correndo, entre os carros, atrás do brinquedo. Por sorte, intervenção divina ou simples acaso matemático, consegui chegar incólume ao outro lado da pista, enquanto os carros zuniam velozmente ao meu lado. Meus pais saíram correndo atrás de mim, gritando cosas que na hora não entendi muito bem. Depois de se certificarem de que eu estava bem, foram batendo em mim até chegar em casa.

Só para ter certeza de que eu estava vivo mesmo.

***

Uma vez, na casa dos meus avós, na mística terra do Janga, na cidade de Paulista, inventei de ir brincar com uma bomba. Não das que explodem, claro, meus avós não eram terroristas. Eu acho. Mas uma bomba mecânica, dessas de puxar água de poço e trazer para as torneiras de casa. Ficava numa casinha que possuía uma grade, geralmente trancada no cadeado pelo meu avô. Usando a lógica das crianças, devo ter pensado que devia ter algum cachorro lá (sempre adorei bichos) e no dia em que vovô esqueceu a grade aberta, fui lá ver o que tinha dentro. Um tanto decepcionado de encontrar um troço de ferro, bastante empoeirado, comecei logo a bulir nele. Sem saber que o neto estava acariciando a bomba d’água como se fosse um cão, meu avô ligou o aparelho, justo no momento em que meu polegar direito se encontrava enfiado no mecanismo de bombear (devo ter achado que era a orelha do bicho). A ponta do meu dedinho virou farofa na mesma hora, jogando sangue para todos os lados, numa daquelas cenas de filme de terror que seriam super legais se eu já fosse adolescente e o dedo esmigalhado não fosse meu. Correram a me levar ao pronto-socorro e os médicos de lá fizeram um bom trabalho salvando meu polegar, que ficou com uma cicatriz em forma de bunda até hoje.

Mas nada disso me impediu de aproveitar a festa de Natal, ao lado do meu irmão mais velho e não-deformado, como se pode ver abaixo.




***

Olhando para mim, ninguém diria, mas já fui campeão de caratê. Infantil, tá, mas fui. Naquele tempo, a arte marcial andava muito em voga, de forma que praticamente todo final de semana rolava algum campeonato. Meu pai, empolgadíssimo, nos obrigava a participar de todos. Modéstia a parte, eu e meus irmãos erámos bastante bons, especialmente na categoria de luta. Provavelmente porque passávamos os dias treinando uns com os outros, de forma um tanto mais informal e bem menos pacífica. 




Na época, tínhamos até ajudantes.

Apesar de tudo isso, detestávamos lutar com os faixas-branca. Eles eram, invariavelmente, incompetentes, desastrados, descoordenados e descontrolados. Enquanto nós mirávamos cuidadosamente em algum ponto específico do corpo do adversário e desferíamos o golpe controlando nossa força, os iniciantes simplesmente agitavam seus membros como embuás epiléticos até acertarem alguma coisa, geralmente só parando ao primeiro respingo de sangue. Tive que enfrentar um desses, na primeira luta do campeonato que aconteceu no Geraldão, ginásio localizado na Zona Sul do Recife, quando o lugar ainda abrigava eventos esportivos. Meu adversário era um menino gordinho, meio míope e que, francamente, parecia sofrer de um leve retardo. Mas era bastante agressivo. O árbitro autorizou o início do combate e eu, querendo acabar logo com aquilo e minimizar as chances de sofrer algum ferimento incapacitante, desferi um chute na cabeça do gordinho. Errei. E por não controlar bem a minha força, aterrissei de costas para o adversário, de pernas abertas. O cérebro do maldito rolha de poço, percebendo a oportunidade, gritou: “Chuta!”.

E assim ele o fez.

O débil-mental me aplicou um pontapé de baixo para cima, bem entre as pernas. Lembro que senti uma moleza que se espalhava pelo corpo e minha visão escureceu de repente. Minha vida passou diante dos meus olhos e, como eu era muito novinho, nem demorou tanto tempo assim. Tudo ficou lento ao meu redor, enquanto meu corpo se erguia no ar com a força do golpe e meu saco infantil era esmagado pelo pé do gordo desgraçado. Quando dei por mim, estava deitado de costas no chão, com uma roda de caras adultas e preocupadas nas laterais do meu campo de visão. Fui examinado e perceberam que eu não havia sofrido nenhum dano permanente. O gordo foi desclassificado por aplicar o proverbial golpe baixo e eu venci a luta, embora tenha perdido boa parte da minha fertilidade naquele dia.

Até hoje, quando vejo um gordinho de quimono, minha voz afina e meu saco se contrai para dentro do abdome.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Dia das Crianças I

Sim, é bom ser criança. Quem não lembra com saudade de uma época em que a única preocupação que se tinha era vencer o vizinho no campeonato de bola de gude e a maior dúvida existencial que passava pelas nossas cabeças era o porquê de meninas não terem pitoca? A vida se resumia a brincar com os amigos, evitar o sexo oposto, assistir TV, buscar novas e criativas formas de se machucar e, de vez em quando, estudar. As ruas eram enormes, especialmente as antigas, de barro. E os bairros eram do tamanho de um país, exibindo fronteiras invisíveis e misteriosas que só cruzaríamos anos depois. Toda descoberta era mágica e as decepções da vida ficavam para sempre marcadas em nossos pequenos corações. Estes eventualmente cresceriam, junto com seus donos, mas a cicatriz permaneceria lá, nos acompanhando mesmo quando nos tornamos adultos, eterno lembrete de uma fase da vida que não volta jamais.

E, para alguns, é até bom que não volte. Francamente, vocês eu não sei, mas já me arrombei muito quando criança. A falta de experiência, a total dependência aos pais, os amigos cruéis, os irmãos malas, tudo isso fez parte da minha infância. Sim, sou um adulto traumatizado. O que sou, hoje, devo ao que passei quando criança. Exagero? Nem um pouco. Como lidar, por exemplo, com a empolgação materna quando a escola organizava as temidas e implacáveis apresentações nas datas cívicas? Francamente, existe algo mais cruel do que vestir seu filho de índio, com sunga e pintura de guerra feita de esparadrapo, e fazer a pobre e confusa criança desfilar pela quadra do colégio, enquanto os alunos mais velhos apontam, riem e marcam sua cara para te usar de pano de chão no dia seguinte?






Sério, mãe? Plumas rosas? Foi na intenção, né?




Pois é. Esse aí em cima sou eu. Pela minha expressão, eu devia ter acabado de perceber as terríveis implicações de sair por aí fantasiado de futuro integrante do YMCA. É provável que, atrás da pessoa que bateu a foto, houvesse algum garoto mais velho, descrevendo com gestos entusiasmados de quantas formas eu seria surrado, humilhado e, de maneira geral, escrotizado no dia seguinte e pelo resto do ano letivo, enquanto eu permanecesse naquela escola ou mesmo naquele bairro. Felizmente, minha mente infantil se retraiu e não reteve memórias desses acontecimentos. 

Mas lembro de muitos outros. O que não falta é história e amanhã, Dia das Crianças, vou compartilhar com você, leitor, alguns dos traumas infantis que a terapia não conseguiu resolver. E quem quiser aproveitar para deixar alguma história constrangedora de infância, nos comentários, sinta-se a vontade.

Afinal, recordar é viver. E, algumas vezes, também é se jogar no chão e chorar em posição fetal.