sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Vida de N3rd: a Lan House, parte II


Ao menos eu trabalhava nos períodos da manhã e começo da tarde. Era muito pior para quem trabalhava à noite e um verdadeiro pesadelo para os folguistas, que eram obrigados a comparecer aos domingos e feriados. Mas o fumo maior ficava reservado para o funcionário da madrugada. Pois é, a Lan House funcionava 24 horas por dia, a primeira do Recife a oferecer esse serviço na época. No período diurno de funcionamento a clientela era composta, em sua maioria, de crianças e adolescentes mal educados, enquanto que no noturno compareciam os pais dessas mesmas crianças e adolescentes, também mal educados, mas com muito mais dinheiro para gastar. Já as madrugadas eram reservadas para os párias sociais, criaturas desprovidas dos conceitos mais básicos de civilização e cujos fetiches inomináveis, aliados a uma total falta de noção de regras de convívio humano os levavam a se reunir na Lan House. Como animais selvagens, reconheciam a própria espécie e se aglomeravam entre os seus, fugindo da luz e das outras pessoas, que tentavam lhe incutir, muitas vezes a força, ideias inaceitáveis acerca de educação, estética e higiene corporal. 



 Eu, ahh...só ia dar uma limpada no cooler.



A vida do funcionário madrugador se resumia, basicamente, a lidar com essa escória maldita, lutar contra o próprio sono e tentar achar algum filme pornô que ele ainda não houvesse baixado. Como o horário era praticamente desprovido das leis dos homens e de Deus, era comum que clientes e empregados se juntassem em sessões de cinema que se estendiam até a manhã do dia seguinte, exibindo as películas mais grotescas e imundas do cinema erótico mundial. A sacanagem só parava quando as primeiras crianças começavam a bater na porta de vidro na manhã seguinte, que era quando eu rendia o funcionário do turno anterior e assistia, enojado, o desfile de seres peludos, suados e trêmulos, os olhos avermelhados e um sorriso horrendo lhes deformando a cara, finalmente seguindo para suas casas, tocas, caixas de papelão ou onde quer que se escondessem dos raios solares ao raiar de cada dia. Como se pode perceber, a clientela era bastante diversificada e, como tudo o que era necessário para usar as máquinas era um cadastro e, claro, dinheiro, praticamente qualquer tipo de pessoa aparecia por lá.


Não tínhamos escrúpulos. Nem beleza.


A Lan House, de cuja abertura eu havia participado, já funcionava há alguns meses e tínhamos tido nossa cota de desajustados e aberrações sociais. Os problemas, quando surgiam, eram geralmente causados por disputas que aconteciam no mundo virtual de Age of Empires ou de Counter Strike, raramente evoluindo para lutas no mundo real. Contribuía para isso a ojeriza que a maioria dos clientes parecia sentir do contato físico com outros seres humanos, além de uma generalizada falta de disposição de se levantar da poltrona. De maneira que tudo prosseguia de forma mais ou menos tranquila até a chegada dele.

O kombeiro do inferno.

Depois dele, as coisas nunca mais fora as mesmas na Lan House.

Continua...

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Vida de N3rd: a Lan House, parte I

Meu primeiro emprego selou de vez o meu destino nérdico: atendente de Lan House. Isso foi no começo do século, no bairro de Boa Viagem, zona sul do Recife, lá pelos lados do colégio Contato, que hoje já nem existe mais. Eu era jovem, inexperiente e muito mais mal-humorado do que sou hoje em dia. Enxergando aí as habilidades necessárias para o cargo, meu amigo René, o gerente, me ofereceu a vaga, a qual eu aceitei feliz da vida, já que imaginava ser a ocupação perfeita para mim. Na minha cabeça, meus dias iriam se resumir a surfar na Internet utilizando a vertiginosa conexão de 128k a que tínhamos acesso, jogar todos os games do mercado e descansar na enorme poltrona que ficava atrás do balcão, dominando todo o ambiente devidamente climatizado.




 Naquela época, tudo era mais diversificado.




Pois é. Além de ingênuo, nessa época eu era também um pouco bobo. Trabalhar em uma Lan House estava longe de ser o sonho de qualquer garoto nerd, por uma infinidade de motivos. Um deles era os clientes, já que lidávamos com crianças que se inseriam em uma faixa etária que variava entre 10 e 55 anos de idade. A meninada era mal-educada, fedorenta, feia e juro que a maior parte deles sofria de alguma deficiência mental e/ou desvio moral. Nos dias de hoje, a maior parte deles pode ser encontrada nos noticiários policialescos estilo Cardinot, protagonizando atos criminosos dos mais vis, mas ao menos estão todos com boa saúde. 


 Fred, rapaz, quanto tempo!
 

Os garotos costumavam passar as manhãs gazeando aula, jogando e gastando o dinheiro do lanche na Lan House, de forma mais ou menos impune, o que sem dúvida diz alguma coisa do nosso sistema educacional. De vez em quando, algum pai descobria a pilantragem e ia bater na Lan atrás do filho. Dependendo da raiva, baixava o cacete no menino ali mesmo, fato que era acompanhado pelos estressados funcionários com sinais afirmativos de cabeça, sorrisos sádicos e ocasionais gritos de “Chuta o ovo!”.

Mas a clientela, apesar de jovem, era bem esperta e esses episódios eram infrequentes. Muitos preferiam não arriscar a pisa e iam jogar antes ou depois das suas aulas, à noite ou nos finais de semana e feriados. Passavam horas competindo e berrando ensandecidamente uns com os outros, comendo porcarias (vendidas por nós mesmos) e tornando o banheiro um lugar inóspito para formas de vida humanas. Os meninos eram tão boca-suja que eu aprendi mais palavrões trabalhando na Lan House do que em toda a minha infância no Janga, um lugar onde cumprimentávamos nossos amigos mais queridos xingando as mães uns dos outros. Era necessário cadastrar os clientes para liberar o acesso à máquina, de maneira que a meninada aproveitava para criar os nomes de usuário mais pornográficos possíveis. Os logins geralmente consistiam em uma combinação de uma referência bélica qualquer, um palavrão e um grande número de absurdos e desnecessários símbolos comumente associados à tipografia encontrada na Internet. Nosso banco de dados estava abarrotado de usuários como Bucet@_eXplosiv@, Tiro%ne$$e%Karai ou Bilol@deBazuK@. Bala_nufuriku era um dos nossos melhores clientes. Como todos se tratavam pelos apelidos, os próprios funcionários acabavam esquecendo os nomes de batismo da criançada e passava a se referir a eles usando os de guerra mesmo. De vez em quando, algum moleque pedia para ligar para os pais, para que o fossem buscar na Lan House. Quando o funcionário de distraía, esse tipo de diálogo podia acontecer:


- Alô? Dona Fulana? Aqui é Frederico, da Lan House. Isso, da Lan House. Lan-Rau-Si. Pronto. É que #minh@rol@ tá aqui em pé na minha frente, chamando pela senhora.

- Como é que é?!

- Putamerda! Não, quer dizer, putaquepariu! Quer dizer...ah, deixa pra lá. Tu, tu, tu...

- Alô?


Sim, era costumeiramente constrangedor, frequentemente insalubre e era tudo feito por um salário mínimo. 8 horas por dia. Mas nada é tão ruim que não possa fica pior.

Muito, mas muito pior.


Continua...

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Intolerável intolerância





Não é fácil se esquivar das polêmicas que surgem na Internet, por mais que se tente. Essa característica de terra de ninguém, de anonimato, de espaço livre para se dizer o que pensa, não importa o tamanho da bobagem que seja, acaba fazendo com que o mundo virtual se torne um reduto para aqueles que, provavelmente, terias suas ideias e ideais rechaçados por seres humanos de carne e osso. E aí a Internet vira uma bagunça, com gente falando o que quer e muito mais pessoas escutando o que não quer, sem nenhuma consequência, regulamentação ou punição.

Pois é. Lá pelos idos dos anos 90 do século passado. Hoje as coisas estão bem diferentes.

Terra de ninguém? Mais para terra de todos. A inclusão digital já é uma realidade, inclusive no brasil. Cada vez mais a população menos favorecida consegue acessar a rede mundial, com todos os benefícios e também, claro, prejuízos que tal exposição pode trazer. Anonimato? Dificilmente. Com uma infinidade de redes sociais disponíveis e uma obsessão crescente entre os internautas, especialmente os mais jovens, de expor a própria vida na web, fica muito difícil ser um cidadão virtual invisível nos dias de hoje. Espaço livre para se dizer o que pensa? Aí é que as coisas começam a se complicar. A Internet é, de fato, um ambiente altamente democrático, com pessoas de diversas origens, defendendo suas opiniões com unhas e dentes, escudadas pela sensação de segurança criada pelo cenário virtual e a aparente distância física entre os interlocutores. Contudo, nos dias de hoje, é cada vez mais difícil lançar opiniões impensadas, infundadas, intolerantes, preconceituosas ou simplesmente estúpidas na rede sem que haja consequências. E elas chegam com cada vez mais rapidez.

Agora existem leis regulamentando o uso da Internet e, com as leis, vêm as punições para os que as desrespeitam. Que fique claro que legislação nenhuma pode mudar a mentalidade um individuo. As regras existem para coibir o comportamento daqueles que tencionem ferir os direitos do próximo. Mas não alteram a cabeça de ninguém. Racistas continuarão racistas, homóbos seguirão homófobos e todo aquele que trouxer, marcado em seu coração ou em sua alma, a mancha do preconceito, qualquer que seja ele, continuará a nutrir as mesmas opiniões pré-concebidas, independente da legislação vigente, seja no Brasil ou em qualquer outro país. Os intolerantes jamais perderão o direito de ter pensamentos intolerantes.

Mas não podem expô-los. Jamais. É feio. É desprezível. É crime. Sim, crime. E sim, você, eu e todas as pessoas perdemos o direito de expressarmos nossa intolerância, nossa estupidez e nossa ignorância. Aos preconceituosos resta apenas o ostracismo, a lepra social, esconder a própria imbecilidade em guetos pseudo-intelectuais, como ratos chafurdando em uma lama viscosa, viciada, um lodo formado pela burrice e pela recusa em aceitar o que é diferente. E que não se use a divergência de opiniões para se justificar atitudes preconceituosas. Existe uma maneira muito fácil de descobrir se a sua opinião sobre determinado assunto é simplesmente polêmica ou definitivamente preconceituosa. Declare-a em voz alta em praça pública, que é o espaço mais democrático pertencente ao povo. Se as pessoas olharem para você com ódio, te agredirem com palavras e atos e você acabar indo parar na delegacia mais próxima, é muito provável que você esteja professando uma opinião intolerante e, portanto, inaceitável. Faça o teste. Vá até o centro da sua cidade e grite que detesta nazistas. Berre que odeia políticos corruptos. Esbraveje contra os pedófilos e molestadores de mulheres. Ninguém vai te olhar feio e muita gente pode até se juntar à sua arenga.

Agora experimente fazer o mesmo em relação a negros. Ou a idosos. Ou mulheres. Ou nordestinos. É muito provável que você acabe em uma situação de linchamento e talvez só a intervenção da polícia possa salvar a sua vida. Isso porque sua opinião feriu o bom-senso geral, aquela homogeneidade de ideias que permeia a mentalidade do coletivo e que nos permite viver em sociedade, com regras e civilidade, onde as pessoas possuem, ainda que de forma rudimentar, uma noção de certo e errado. Em inglês, isso se chama common sense, ou senso comum, o que faz ainda mais sentido do que a expressão em português. Comum porque pertence a todos. Existe alguma lei que me impeça de contar piadas em um funeral? Não faço ideia, mas não preciso realmente saber, pois o meu bom-senso, construído através das minhas interações no meio social ao qual estou inserido me dizem que essa não é uma boa ideia.

Ninguém é preconceituoso por ingenuidade ou pura falta de traquejo social. A intolerância tem o propósito muito específico de ferir, de destruir, de humilhar, de deixar cicatrizes. E quem a perpetua sabe bem o que está fazendo. Pode até não acreditar naquilo que está falando, por saber que são absurdos infundados. Mas teve a intenção, que se transformou em ato e que acabou repercutindo, talvez muito mais do que o autor imaginou que fosse possível, esquecendo-se da abrangência da Internet e da vigilância cada vez maior daqueles que decidiram não mais tolerar esse tipo de atitude. E que o vigilantismo continue. 

Que não haja espaço na Internet ou e qualquer outro ambiente, real ou virtual, para aqueles que sofrem das doenças do racismo, da homofobia e da xenofobia. Que tais indivíduos sejam separados da sociedade, por não a merecerem, e que aqueles que escaparem dessa quarentena sejam obrigados a ocultarem seus pensamentos para todo o sempre, vivendo uma mentira e vestindo uma máscara de civilidade, até que aprendam a amá-la e não saibam mais viver sem ela. Que se curem desses males ou sofram os horríveis sintomas dessas enfermidades sociais, destruindo suas próprias vidas, mas jamais ferindo a dignidade do próximo. Que o ódio irracional que sentem se renove em amor ou que se destile em veneno, apodrecendo suas almas além de qualquer salvação. Que se arrependam de seus pecados ou aceitem as consequências dos seus atos. 

Chega de tolerar a intolerância.