quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O sonho










Eu raramente lembro os meus sonhos. Sim, porque de acordo com os cientistas, não é uma questão de sonhar ou não. Sonhamos sempre, geralmente várias vezes em uma única noite. Mas nem sempre os devaneios ficam gravados na memória. Pode haver uma boa razão para isso, uma vez que os pesadelos acabam, assim, possuindo uma vida muito mais efêmera. E recordar, durante o dia, os terrores noturnos talvez fosse demais para as mentes normais. Reviver um trauma dia após dia, nos mínimos detalhes, vivenciando novamente um horror que jamais aconteceu. Essa pode, talvez, ser a melhor descrição que se pode imaginar para o inferno. Se tal lugar existe de fato ou se é apenas uma construção da nossa imaginação cristã-ocidental, pouco importa. Quando temos um pesadelo, vislumbramos, por um momento congelado no tempo e espaço, essa dimensão de horrores infindáveis e descobrimos, aterrorizados, que o inferno, afinal, não passa de um canto obscuro de nossas próprias almas, do qual jamais poderemos escapar.

E agora eu compartilho com vocês minha última visita a esse lugar sinistro. 


***


“E se você olhar longamente para o abismo,
o abismo também olha para dentro de você.”

Nietzsche



Sentia a areia fina sob meus pés descalços. Havia árvores ao meu redor, lançando sombras retorcidas aos meus pés, como que tentando agarra-los, prendê-los ao chão. Olhei à minha volta lentamente, tentando absorver em uma única e profunda respiração o local onde eu me encontrava. Meus ouvidos captaram um som distante, ritmado, um vai-e-vem constante que me avisava que o mar estava perto. Às minhas costas, as árvores se aproximavam umas das outras, formando uma apertada ciranda de galhos, como que a proteger algo sagrado, um conhecimento tão terrível que apenas aquelas guardiãs mudas e eternas poderiam ousar fazê-lo. Súbito, senti que era observado. 

Havia olhos acompanhando meus movimentos. Vários deles, seguindo meus passos, meus gestos, marcando o ritmo da minha respiração, que se acelerava cada vez mais. Minhas pernas, pesadas de medo, não obedeciam nem aos meus comandos, nem as minhas súplicas. Senti um movimento com o canto do olho e virei-me lentamente nessa direção.  Havia uma criança ali. Tinha, assim como eu, os pés descalços, os dedos infantis deixando leves rastros na areia. Os cabelos eram longos, escuros e cacheados, emoldurando um rosto jovem demais para que se definisse com segurança seu sexo. Olhava diretamente nos meus olhos, enquanto se aproximava vagarosamente. Senti que outras crianças chegavam mais perto, deixando as sombras das árvores, vindas de todas as direções. Seus grandes olhos negros jamais deixavam os meus e pareciam roubar a voz da minha garganta, que não produzia som algum. Chegou mais perto, permanecendo a poucos passos de mim. Estendeu sua pequena mão, alva, quase translúcida, em direção ao meu rosto. Seus lábios se abriram e foi então que eu ouvi.

O som era como o guinchar de algum animal ferido, estridente, distorcido, metálico. Olhei para aquela estranha criatura a minha frente, sem compreender, e percebi que não era dela que partia aquele terrível ruído. A criança arregalou seus olhos escuros e pude ver o medo refletido neles. Mais um guinchar vindo da floresta as minhas costas, dessa vez mais perto, e um som como grandes árvores tombando lentamente, resistindo em se entregar ao solo que é tanto sua casa quanto seu carcereiro. Senti que o chão estremecia em um ritmo cadenciado, moroso e cada vez mais próximo. Senti as sombras se adensando ao meu redor, não exatamente como se o sol se pusesse repentinamente, mas como se algo, vindo da floresta, fizesse com que a luz do dia se afastasse, fugisse, nos abandonando a uma noite não natural, povoada de coisas incompreensíveis e terríveis. Súbito, a criança agarrou minha mão com dedos que pareciam feitos de gelo. Senti que meus membros inferiores voltavam à vida através daquele toque gélido e eu pude acompanhar aquele ser estranhamente infantil, que tentava freneticamente me afastar daquilo que estava vindo pela floresta.

O som novamente, como o grito de dor de um deus assassinado por suas criaturas, crescendo cada vez mais, dilacerando meus tímpanos, buscando meu coração. Naquela estranha penumbra, podia discernir vultos pálidos correndo por entre as árvores. Eu me movimentava cegamente, sem saber para onde ir e do que eu fugia, sentindo a vibração atrás de mim, escutando o barulho horripilante de árvores sendo derrubadas e arrancadas do solo. A algazarra era agora ensurdecedora, tão próxima que parecia nos envolver completamente, abafando o ruído das ondas distantes. Paramos em frente a uma árvore alta, antiga, com vários galhos grossos se projetando do seu tronco retorcido. Subimos. A vibração agora fazia com que o chão tremesse, os galhos balançassem, a árvore inteira ameaçasse ser atirada por terra, enquanto subíamos sem parar. Exausto, sentei-me em um galho, oculto por uma densa folhagem e coloquei os dedos nos ouvidos, tentando isolar aquele som infernal, cerrando os olhos e sentindo a vibração atingir seu ápice, quase me derrubando em sua violência. Havia chegado.

Súbito, apenas o silêncio. O único som era da minha pulsação latejando em meus tímpanos e a minha respiração ofegante. Lentamente, retirei os dedos dos ouvidos e abri os olhos. A criança que me havia guiado até ali estava em um outro galho, mais baixo. Ela tinha uma expressão de terror inimaginável em seu rosto andrógino, mal parecendo capaz de respirar. Meu coração bateu furiosamente e meu cérebro gritava para que eu fugisse, corresse, abandonasse tudo, morresse, qualquer coisa, menos permanecer naquele lugar. Segui a direção do seu olhar e foi apenas então que eu vi. 

Entre árvores caídas e galhos partidos, eu pude enxergar o primeiro deles. Havia outros, parados em cada um dos lados do que estava mais próximo. Havia algo perturbadoramente familiar em suas silhuetas, como um terror antigo, jamais esquecido, que desperta com o correr dos anos, selvagem, incompreensível. O primeiro deles deu um passo para frente, em um movimento mecânico, lento, não natural, depois imitado pelos companheiros. Eram mais altos que as árvores e tinham o copo volumoso coberto por um pelo curto, castanho claro. Mais um passo, custoso, deliberado, fazendo o chão tremer e os galhos das árvores balançarem suavemente. Tinham orelhas grandes, projetando-se do alto de suas cabeças arredondadas. Estas se mexiam muito lentamente para a esquerda e para a direita, com um estranho zumbido, como que buscando algo ou alguém. Mais um passo. Agora eu podia ver claramente o que eram. 

Memórias da minha infância fluíram até minha mente. Eu já os tinha visto antes, muitas e muitas vezes. Reconheci o focinho curto, imóvel e pálido. Os olhos eram dois poços negros, nada refletindo. Eram ursos, como os de pelúcia com os quais as crianças costumam brincar, conversar, confiar segredos, levarem para as suas camas antes de dormir. Mas tudo naquelas criaturas parecia errado. O tamanho absurdo, os movimentos lentos, artificiais, a expressão vazia, os olhos mortos, as mãos peludas terminando em garras. Garras. Ao olhar para elas senti que meu corpo tremia incontrolavelmente e senti que o bater do meu coração seria capaz de denunciar minha presença. Os ursos seguiram em seus passos lentos, as cabeças agora fixadas em um ponto à frente, fazendo o solo estremecer à sua passagem. O primeiro deles seguiu na dianteira, acompanhado pelo que se encontrava a sua direita. O da esquerda, mais próximo á arvore que servia de refúgio para mim e para a criança, continuou caminhando, parando subitamente ao alcançar nossa posição.

Os outros ursos, silenciosamente, também se detiveram em seu percurso. Estava bem próximo de nós agora, ainda voltado para algum ponto onde deveria estar o mar. Podia sentir uma vibração profunda, grave, que parecia emanar do corpo da criatura mais próxima de mim, tão perto que eu poderia estender a mão e tocar seu pelo macio, se me atrevesse. Fiquei completamente imóvel, sem ousar ao menos respirar, sentindo uma gota de suor brotar da minha testa e viajar pelo meu rosto, descendo pelo canto do nariz, desviando dos meus lábios e pendendo do meu queixo trêmulo. O urso moveu uma de suas pernas, monocórdico, prestes a seguir em sua caminhada. Foi então que sua enorme cabeça virou em minha direção, rapidamente, os buracos negros que eram seus olhos fixados nos meus. De dentro dele, partiu um grito medonho, um urro de ódio e dor que não poderiam jamais ser compreendidos pela mente humana. Minhas forças me abandonaram e eu caí do galho. Os outros ursos responderam ao chamado, todos guinchando de forma ensurdecedora, a vibração aumentando, atravessando meu corpo. Corri. 

Corri na direção oposta a daquelas coisas medonhas. Corri em direção ao mar. De alguma forma, sabia que estaria seguro, se ao menos conseguisse alcançar a praia. Não olhei para trás. Pelo canto do olho, vi as outras crianças fugindo e gritando. Não parei para lutar, para ajuda-las. Nem ao menos pensei nisso. O terror abjeto, incontrolável, guiava meus passos. O chão tremia violentamente, os terríveis urros emitidos pelos ursos reverberando pela floresta, roubando a força das minhas pernas. Caí. Deitado na areia fria, tive coragem de olhar para trás. Um dos ursos carregava em sua garra uma das crianças, que se debatia inutilmente. Era a que havia me tomado pela mão e guiado para segurança temporária das árvores. Vi o desespero em seus olhos infantis, que pareciam desejar a morte, o esquecimento, a não existência, qualquer coisa, menos o destino que lhe aguardava. O urso aproximou lentamente a criança do seu focinho. Ela me avistou e seu olhar implorava por ajuda. Virei as costas e recomecei a correr, ouvindo o terrível berro da criança, misturando-se a outros gritos infantis, aos urros de dor, fúria e desespero que formavam uma sinfonia medonha e espectral.

Corri. Sentia que o mar estava bem a minha frente, podia discernir o barulho das ondas quebrando suavemente na praia. Um a um, as vozes das crianças silenciaram e tudo o que eu ouvia então era o marulho da água e minha respiração ofegante. O mar se encontrava à minha frente, eu ia conseguir. Foi então que senti garras se fechando em torno de mim, erguendo-me do chão e senti que estava perdido. O urso virou-me em sua direção, aproximando-me cada vez mais de seu rosto vazio, destituído de expressão. A vibração trovejava pelo meu corpo, enquanto os olhos opacos da criatura me estudavam, frios, inumanos. Parou. Tudo era silêncio. Então, subitamente, eu compreendi o que me esperava e gritei, meu berro se confundindo com o guinchar do urso, cujos olhos se aproximavam mais e mais de mim. E então, escuridão.

E então, mais nada.


***

Esse texto é dedicado a todos aqueles que, em algum ponto de suas vidas, tiveram medo do que o sono poderia lhes trazer. Os sonhos, dizem, nada mais são do que um reflexo distorcido de nós mesmos. Distorcido, mas não menos verdadeiro.