sábado, 4 de dezembro de 2010

Turismo no Recife: Club Metrópole











Recife tem muitas opções de lazer para aqueles que curtem se jogar na balada. São casas de show, bares dançantes, clubes noturnos e tudo mais. Eu, pessoalmente, não sou um grande fã de boates. São lugares onde é quase impossível conversar, a bebida é cara, a comida é ruim e sempre me sinto aquele tipo de cara. Sabe como é, aquele tipo. O deslocado-que-não-consegue-se-divertir-e-acaba-estragando-a-noite-dos-amigos-dormindo-no-balcão-até-babar-e-aperreando-para-ir-embora-logo. Esse tipo. De modo que geralmente evito. Mas, na euforia da minha aprovação no Mestrado de História da UFPE, acabei marcando com alguns amigos para ir a uma, como diria minha mãe, danceteria. E se é para ir, melhor enfiar o pé na jaca logo. Resolvi aceitar a sugestão do pessoal e conhecer a balada gay do Recife. Aparentemente, a cidade possui inúmeros pontos de encontro GLS, mas o mais famoso (ou infame, se você for uma pessoa preconceituosa) é o clube noturno Metrópole, localizado no bairro da Boa Vista, centro.

Admito que no começo fiquei meio apreensivo. Não sabia bem o que ia encontrar lá dentro e nem qual é o comportamento adequado em um lugar assim. Acabei confirmando um velho preconceito meu: boates são todas iguais. Música alta. Gelo seco. Laser nos olhos. Gente demais. Menino beijando menino. Menina beijando menina. Tá, esses últimos já é mais incomum, mas aí que está justamente a graça. Quem vai para a balada gay já é, por definição, uma pessoa desprovida de frescuras, independente de para qual time torce. O pessoal está lá para realmente se divertir e se soltar, coisa que não acontece nas boates extrema-direita, onde as pessoas vão mais para ver e serem vistas, nunca parecendo ser realmente elas mesmas. 

Assim, lá estava eu, em uma boate gay, junto aos meus amigos gays e tentando não fazer aquela cara de turista em relação a tudo o que me cercava. E para quem é novato, uma das coisas mais divertidas é tentar descobrir quem é gay e quem não é. Não é tão simples quanto pode parecer à primeira vista, por isso é sempre bom contar com a consultoria de quem entende do assunto.


- Meu radar não falha, pode confiar. Tá vendo aquele ali, Fred? Viado. Aquele outro? Viado. Viado. Viado. Libélula ensandecida. Viado. Viado...

- A gente tá numa boate GLS, isso é meio óbvio, né?

- Nada disso. Tem que ter o sensor. Porque muita gente frequenta, mas não é. Você, por exemplo.

- Hmm. Ok. Então deixa ver se eu consigo identificar. Aquele ali. Não tem jeito de frango.

- É, aquele nunca viu um pinto...

- Há, acertei!

- ...porque tava sempre de costas.

- Putamerda!

- Pois é. E aquele ali? O que você acha?

- Gay.

- Muito bem. E aquele outro?

- Gay.

- Acertou! Menina, tu leva jeito pra coisa!

- ...

- Tá, último teste. E aquele ali?

- Aquele nem precisa de radar, né? Tá na cara que é frango.

- Errou. 

- Errei?!

- Aquele ali não é gay. Só é alvirrubro.

- Aí não vale.

- Eu sei, fica difícil, né?


Interessante também é dar de cara com gente conhecida. Como a homossexualidade ainda causa, no mínimo, estranhamento para muita gente, muitos preferem evitar ser vistos em lugares como a Metrópole. Os atores da Globo que o digam. Outros, mais ousados, ainda chegam a frequentar, mas já com uma história pronta para camuflar suas verdadeiras intenções ali. Nem sempre dá muito certo.


- Professor! O senhor por aqui?

- ...eu...Frederico? Como...como você está?

- Olha só, quem diria? Não sabia que o senhor curtia!

- Não, eu...veja bem...isso aqui é um...isso aqui é um estudo de campo na área de História Social. Sim. História Social. Meu objetivo é analisar a evolução de certos grupos urbanos dentro de um sistema de interação social plural e culturalmente polissêmico sob a uma perspectiva natur...

- Professor, aquele boy com quem o senhor tava dançando Banda Lapada agorinha tá chamando o senhor.

- ...boy? Que boy? Estou aqui desacompanhado, Frederico! Vim para realizar estudos acadêmicos importantíssimos in loco e não sei a que “boy” você se refere.

- Me refiro aquele ali atrás, de blusinha roxa acochada e que nesse exato momento tá apontando pro senhor e estendendo as mãos pra frente, na altura da cintura e fazendo movimentos pélvicos de vai e vem.

- Ora, é evidente que não é comig...

- ...e que acabou de passar a mão na sua bunda. Esse boy aí.

- ...

- Bem novinho ele, né?

- Frederico, eu já lhe dei as notas da sua última prova?


Meu futuro acadêmico está garantido, sem a menor dúvida. Mas nem todos são assim, enrustidos. Ao contrário, o povo vai mesmo é para se jogar. E era o que estava fazendo um dos frequentadores, dançando freneticamente sobre o queijo em um dos pavimentos da boate. Ele era alto, magérrimo, mostrava sinais de calvície precoce ao mesmo tempo em que exibia um penteado inaceitável, estilo Playmobil, composto dos restos de cabelos crespos que partiam do meio da cabeça e chegavam quase aos ombros, “estirados a pulso”, como diria minha mãe. Vestia camisa e calça apertadíssimas, valorizando seu corpo esquelético e evidenciando o terrível fato de não estar usando cueca. Enfim, parecia o avesso do cu do cão. Mas como dançava. Dançava como se ninguém estivesse ali, ninguém que pudesse julgá-lo ou achar graça de uma figura tão exótica. Dançava para todos e para pessoa alguma. Dançava para si próprio, como se estivesse na sala de sua casa. Dançava do jeito que se deve dançar, sem dever nada a ninguém.

E por falar em dever, a Metrópole possui uma espécie de moeda própria, composta por cédulas rosa de valores variados, criativamente batizadas de “Pink”. Tem gente que comparece tanto ao local que acaba trocando todo o dinheiro de verdade pela grana gay. Uma amiga minha confessou que chegou a passar uma semana se deslocando a pé porque a única coisa que encontrava quando abria a carteira na catraca do ônibus era Pink. Real que é bom, nada. Além do câmbio diferenciado, existe também um sem número de expressões próprias do mundo gay, de uso cada vez mais corrente. Gírias como “beijo, me liga”, “arrasou, amiga” e “abafa” já são de uso geral, inclusive por muito homófobo por aí que não faz ideia do que está falando. Outras são bem mais específicas e um tanto quanto restritas.


- O que ele tem que tá tão morgado, heim?

- Ah, Fred...esse deve tá com CRO.

- Fudeu. Que porra é CRO?

- Carência de Rola no Organismo.

- Putaquepariu, por que eu ainda pergunto essas coisas?!


Problemas de comunicação à parte, posso dizer que minha noite na balada gay foi bastante divertida. As pessoas são animadas, muito respeitadoras e a música do ambiente, se não é exatamente do meu tipo favorito, ao menos é bem melhor do que o que se ouve nas boates hetero da vida. E se você não se animou para ir, não se preocupe. A night vai bombar com ou sem você, nêga. E na próxima vez que vier ao Recife, lembre-se de dar uma passadinha na Metrópole, conheça a proprietária e madrinha GLS da cidade, Maria do Céu, gaste alguns Pinks no bar, suba no queijo e desça até o chão. 

Arrasou!

terça-feira, 30 de novembro de 2010

O país dos carros queimados




Isso que você aí em cima é um carro queimado. Não, não sou carioca, nem morador do Rio de Janeiro. A rua onde essa carcaça se encontrava até pouco tempo atrás é uma via tranquila do bairro residencial de Setúbal, zona sul do Recife, Pernambuco, Nordeste do Brasil, para os que sofrem de dislexia geográfica. Quando saí de casa de manhã cedo para trabalhar e dei de cara com esses destroços fumegantes, fiquei assustado. Não sabia o que havia acontecido, não tinha como descobrir naquele momento e, resignado, montei na minha bicicleta e segui para dar minhas aulas de inglês.

Quando voltei, à noite, ele continuava lá. Parecia ainda mais triste no escuro, a falta de luz enfatizando mais do que escondendo os destroços retorcidos, uma mancha de fuligem embaixo do veículo se misturando com a noite em volta. Imaginei as piores coisas. Talvez algum bandido houvesse promovido um assalto fazendo uso daquele carro, certamente roubado de alguma vítima infeliz, e ao final da ação o meliante teria decidido apagar com fogo a memória dos seus atos. Também era possível que fosse um crime passional, uma amante enlouquecida de ciúmes que, na falta do corpo do amado, havia se contentado em atear chamas ao seu veículo, pobre substituto de uma paixão obsessiva. A minha mente criava mil explicações para a presença daquele cadáver de metal e vidro, jazendo ali, bem na porta do meu prédio.

O mistério se resolveu rapidamente e era bem mais desinteressante do que os cenários hiperbólicos criados pela minha imaginação desenfreada. Uma vizinha havia tido um problema de aquecimento com o radiador, que entrou em combustão e reduziu o veículo ao estado no qual eu o havia encontrado de manhã cedo. Nada de marginais audaciosos ou paixões piromaníacas, portanto. Agora seria apenas uma questão de aguardar a retirada dos restos carbonizados e a rua voltaria à sua tranquilidade habitual.

Isso não aconteceu no dia seguinte. Nem no dia depois desse. Passou-se uma semana e o carro continuou lá. A cada manhã eu imaginava que sairia para trabalhar sem ter que olhar aquele entulho queimado na minha rua e sempre me frustrava. Imagino que os vizinhos também se horrorizavam com aquela paisagem e desejavam ter aquele traste removido o quanto antes. Mas ninguém fazia nada. Acometidos por aquele sentimento coletivo muito comum do “Deixa pra lá, não é problema meu”, as pessoas iam esperando que a proprietária do veículo resolvesse a situação e ninguém tomava uma atitude. Em poucas noites, a carcaça foi saqueada, mãos invisíveis levando tudo e qualquer coisa que pudesse ser vendida. O esqueleto de metal, agora com um aspecto ainda mais deprimente, se tornava um depósito de lixo para todos os que passavam por aquela via. Também se tornou ponto de referência, mas para aquele que querem evitar certos lugares estranhos ou suspeitos. “É depois daquela rua do carro queimado”, diziam as pessoas, “mas é melhor ir por outro lugar. Ali é meio esquisito.” A área foi ficando cada vez mais vazia, a coleta de lixo simplesmente não dava mais conta do acúmulo irregular e diário de detritos e agora o local começava a atrair a presença de pessoas que passavam as madrugadas junto aos restos de metal, os rostos sujos iluminados pela chama constante dos seus cachimbos de crack. A rua rapidamente se transformava em algo diferente, pior, as pessoas aceitando tudo de maneira bovina, apenas ocasionalmente balando as cabeças e sussurrando entre si “Meu Deus, que absurdo...e ninguém faz nada!”

Um dia, liguei para a prefeitura e expliquei o acontecido. Um guincho foi enviado na manhã seguinte e o carro queimado foi retirado sem maiores problemas. A coleta de lixo conseguiu remover as porcarias acumuladas por dias de complacência e uma chuva de verão lavou a horrível cicatriz de fuligem que marcava o asfalto. Os estranhos personagens noturnos, privados do seu habitat, deixaram de frequentar a rua, que passou a receber bicicletas, carros, pedestres, mães levando seus filhos para a escola, cães levando seus donos para passear. Vida, novamente. E tudo com uma simples ligação, que já poderia ter resolvido a situação há muito tempo, caso as pessoas conseguissem romper mais facilmente o gesso da conformidade coletiva. E eu me incluo entre elas.

É fácil botar a culpa no governo, no estado, pelas injustiças e contrariedades que enfrentamos todos os dias. Muito mais difícil é admitir que é a sociedade que legitima essa situação, quando assume uma atitude passiva perante aquilo que reconhece como errado. Se as coisas estão como estão, é simplesmente porque permitimos que assim fosse. Baixamos a cabeça, fingimos que não é conosco, pensamos que poderia ser pior. Assim, questões se tornam problemas, problemas se transformam em mazelas sociais e logo a situação assume o status de insolúvel. Como enxergar uma solução para um problema tão antigo que já foi incorporado ao cotidiano? Como podemos nos queixar da estrutura podre de uma casa, se as pessoas fingem que não enxergam os cupins a roer-lhe a base e varrem a serragem para debaixo do tapete? O mais grave mal social do Brasil é o conformismo coletivo, uma doença congênita e crônica, transformando cidadãos em cínicos, que apenas reclamam da atual conjuntura e nada fazem para melhorá-la. 

Ou  a sociedade muda, ou nos tornaremos o país dos carros queimados.