terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Malhação é alegria, parte II






Passei para outro aparelho e, antes de me deitar, inspecionei o acolchoado. Estava rasgado em vários pontos, com uma espuma marrom escapando das falhas e exalando um improvável odor de peixaria. A superfície do banco brilhava com uma camada grossa e gelatinosa de suor velho misturado com caspa, formando uma argamassa orgânica que estava prestes a adquirir consciência e reivindicar seus direitos. Passei alguns segundos fitando, horrorizado, a máquina que eu deveria usar, quando o instrutor materializou-se ao meu lado, aparentemente vindo de lugar nenhum.

- Suor pra caralho. Foda, né? Pior é a procedência. O pessoal sua por todo canto, claro, mas como eles malham deitados aí, é mais suor de cu mesmo. Escorre pelo rêgo, sabe? A gente limpa a cada 15 dias, mas ele geralmente evapora antes disso. E depois se condensa no teto. Aquilo lá não é goteira, bote fé. A rapaziada chama isso aí de “chuva de hepatite”, HAHAHAHAHAHAHA! Tá ligado que hepatite se pega pelo suor também, né? Daí pinga na cara, no olho, na boca, pense, HAHAHAHAHAHAHAHA!

- ...

- Mas diz aí, como andam as tuas vacinas?

- Elas...tão em dia. Eu acho.

- Massa. Antirrábica também, né?

- Oi?

- Nada. E aí, vai começar?

- Vou...vou. Vou sim. Deixa só eu ajeitar a minha luva aqui e...

De repente. Fez-se um silêncio ensurdecedor. As pessoas pararam suas séries no meio para olhar para mim. Percebi que era o único na academia usando proteção para as mãos.

- Hmm. Algum problema?

Uma mulher mais alta que eu e de formas retangulares se aproximou e mostrou as palmas, que com os anos haviam se transformado em dois cascos onde mal se distinguia a divisão entre os dedos.

- Luva pra quê? Tem que pegar calo, boy! Tu sois fresco, é?

- Bom, eu...

- TU SOIS FRESCO??

- Sou! Quer dizer, não sei mais! Eu...eu vou malhar ali, ok?

As pessoas ficaram me olhando enquanto eu me afastava para um canto obscuro da sala de ginástica. Distraído, me encostei em um aparelho onde dois brucutus se revezavam utilizando pesos desumanos.

- Opa, vai puxar ferro, pai?

- ...oi? Eu? Não, eu preciso ver na minha ficha...

- HAHAHAHAHAHAHAHA, ficha? Mas é um novato mesmo.

- E...como vocês fazem pra lembrar todas os exercícios e os pesos? Memorizam a ficha inteira?!

- Claro que não. Um dos efeitos colaterais do anabolizante de cavalo que eu tomo diariamente é a perda progressiva e irremediável da minha memória. Quando quase esqueci o caminho da academia, resolvi dormir aqui, enrolado nos colchonetes usados. Agora eu esqueci foi o caminho de casa, mas quem se importa?

- Então como...?

- Simples. Eu tatuo as minhas séries, assim eu nunca esqueço aquilo que realmente importa na minha vida.

- Mas...mas as séries mudam regularmente! Como você vai...

- Eu uso o corpo todo. Só falta a cabeça, o saco e a bunda. Mas já cheguei no períneo. Observe!

- Pelo amor de Deus, nãããããrrrrrrrrrrrrrghhh!

Atordoado pela dantesca visão, me afastei aos tropeços. Meus globos oculares, forçados ao limite, procuravam se afastar do exterior do meu rosto e se enterrar mais profundamente na minha cabeça, quase se fundindo ao cérebro. Nesse momento, senti pequenos tremores, em um ritmo compassado, como se um bate-estaca estivesse em funcionamento no terreno ao lado. Quando dirigi meu olhar para a escada, vi uma criatura saída das fábulas das academias de subúrbio. Tinha mais de dois metros de altura e braços que rivalizavam com as colunas de sustentação do edifício. Só as veias que corriam pelo antebraço eram mais grossas do que as minhas canelas. As duas, juntas. As pernas eram tão grossas que produziam um som de raspar e, tive a impressão, um leve faiscar no ponto onde as coxas de encontravam ao caminhar. A besta mitológica tinha cabelos compridos, olhos esbugalhados e um sorriso feroz.

- Aê! Cadê essa galera da malhação? EU PERGUNTEI “CADÊ?”!

Imediatamente, as pessoas ao redor começaram a emitir gritinhos de encorajamento mútuo, redobrando os esforços em suas respectivas máquinas. Um frequentador magrinho dobrou seus pesos em resposta à saudação do monstro marombeiro, como que obedecendo um comando tácito e silencioso. Lágrimas de suor escorriam por todos os poros do trêmulo rapaz.

- Eu gosto de ver assim! No gás! MALHAÇÃO É ALEGRIA!

As pessoas repetiram o axioma, enlevadas, mal dando uma pausa entre uma série e outra. O troglodita deitou-se na máquina de supino. Como se fossem um só, as pessoas ao redor cederam todos os seus pesos para ele. Temeroso, segui o movimento coletivo disponibilizando as minhas ridículas anilhas de 2kgs. A entidade anabolizada construiu para si uma barra de exercícios de proporções absurdas. Ao flexionar os músculos na primeira repetição, temi que deslocasse o eixo da Terra. As pessoas, mesmerizadas, acompanhavam sua contagem.

- UM! AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHH!

- DOIS! GGGGGGGGGAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHH!

- TRÊS! MALHAÇÃO É ALEGRIA!

O povo seguia transfixado, enquanto eu me afastava discretamente daquele culto. Da rua, ainda podia ouvir os rugidos daquele ser, seguidos por aclamações múltiplas. Resignado, cheguei a uma decisão.

No dia seguinte eu saí da academia e comecei a correr na praia.