sábado, 20 de novembro de 2010

Turismo no Recife: o ateliê de Francisco Brennand




O Recife possui um grande número de atrações turísticas e culturais, não faltando localidades que revelam a marcante personalidade da cidade. Algumas pessoas preferem a orla da Zona Sul, com as praias de Boa Viagem e do Pina, equipadas com seus aparelhos de ginástica, quadras de tênis, ciclovias e o Parque Dona Lindu, tudo muito bem guardado por policiais, salva-vidas e tubarões treinados para atacar e comer qualquer coisa que chegue perto da água. Outros optam pelo Centro, literalmente o Marco Zero da capital pernambucana, com suas ruas de paralelepípedos, trilhos de bonde, igrejas históricas, inúmeras pontes, centros culturais, museus e o belo casario antigo ainda preservado em diversos pontos da cidade, tudo acompanhado pela batucada dos maracatus e pelo característico cheiro dos manguezais, já inodoros ao nativo recifense. Também há aqueles que não trocam a Zona Norte por nada, com seu impressionante conjunto de arranha-céus as margens do Rio Capibaribe, um sem-número de bares e restaurantes, museus, butiques chiques, um bonito conjunto de praças e o disputadíssimo parque da Jaqueira, além dos estádios dos três maiores times locais, Sport, Náutico e Santa Cruz, cujas torcidas organizadas aterrorizam a vizinhança e fazem a rapa nos transeuntes em dia de jogo, mas tudo em clima de festa e de alegria.

Pouco comentada é a Zona Oeste, mais afastada da agitação e com características mais bucólicas. É lá que ficam a Universidade Federal de Pernambuco e sua irmã mais moça, a Universidade Federal Rural de Pernambuco, ambas contando com enormes campi e áreas verdes, aliás uma das maiores características dessa região, dominada por grandes extensões de floresta, casas de diversos tamanhos e até ruas de barro. Ali se encontram o Jardim Botânico e o Zoológico da cidade do Recife, bem como o açude de Apipucos, bairro verdíssimo, lar do sociólogo Gilberto Freyre e um local que, ao menos por enquanto, continua driblando a expansão imobiliária desenfreada que se desencadeou na cidade nos últimos anos. Essa região também abriga um dos locais mais originais do Recife, o ateliê-museu do artista plástico pernambucano Francisco Brennand. É ali que o escultor se dedica a dar vida a suas obras, criando um enorme espaço dedicado quase que exclusivamente a um único assunto.

Picas.

Sim, picas. A inspiração fálica do trabalho de Brennand é bastante conhecida na capital pernambucana e no meio artístico de forma geral. Ninguém sabe bem de onde veio essa mania de ficar esculpindo bilolas a torto e a direito, mas o fato é que o artista construiu, em seu local de trabalho, uma verdadeira catedral dedicada à exaltação de caralhos de diversas formas e tamanhos, quase tudo feito de cerâmica e geralmente dentro dos contextos mais perturbadores ou alienígenas que a mente insana de Brennand possa conceber.


 Não, esse troço aí não é uma cobra. Pois é.


O ambiente é tão densamente povoado de rolas que faz medo até tocar nas paredes. Aliás, esse é um dos poucos lugares onde encostar-se ao muro é a coisa mais perigosa a se fazer quando em risco iminente de ataque sexual. No final das contas, de fato, dá tudo na mesma. Também é comum encontrar formas vagamente semelhantes a mulheres desmembradas ou órgãos sexuais femininos tendo seus espaços privativos, como direi, invadidos por maçarocas de cerâmica. É um local onde escorregar e cair de bunda no chão equivale mais ou menos a frequentar um chuveiro coletivo em uma prisão para maníacos sexuais, onde você é o novato e, por algum motivo inexplicável, só sobraram roupas de mulher para você vestir.



O novato derrubou o sabonete! Hora do show, meninas!



Mas Brennand é um artista respeitado e, apesar do seu estranho fascínio por cacetes, muito amado pelo povo recifense. Seu trabalho pode ser encontrado em diversas galerias de arte, prédios públicos, painéis e museus, não apenas em Pernambuco, mas em todo o Brasil e fora dele. Os turistas que chegam à cidade pelo porto, vindos dos seus transatlânticos de luxo, são logo saudados pela Praça do Marco Zero, emoldurada pelo belíssimo conjunto de prédios históricos que funcionam como espaços culturais. Também dão de cara com uma jemba de cerâmica de 32 metros de altura, circundada por pitocas menores, um pouco menos assustadoras. O nome oficial é Torre de Cristal, mas o recifense carinhosamente se refere à obra como “A Pica de Brennand”, por motivos dolorosamente óbvios.



 Tamanho É documento.


Francisco Brennand é um senhor simpático com pinta de papai Noel, constantemente passeando pela sua propriedade com sua indefectível bengala e um desnecessário cachecol. Olhando para ele, fica difícil imaginar um velhinho de aparência tão doce projetando esculturas que mais parecem saídas dos pesadelos homoeróticos de algum ilustrador japonês de mangás pornô-satânicos.



 "E agora, o que vou esculpir? Hmm...já sei, uma piroca!"


Mas sua arte não é para todo mundo. Consta que um dia uma senhora dos Estados Unidos foi levada para visitar o ateliê. Por descuido ou pura sacanagem, ninguém avisou a velha que ela estava adentrando uma espécie de santuário dedicado à genitália masculina, de modo que, ao perceber o ambiente abarrotado de trolhas onde ela havia sido jogada, a coitada soltou um “The horror, the horror!”, frase que até hoje enfeita umas das obras expostas, mostrando que de bonzinho Brennand não tem nada, ele curte é tirar onda mesmo. Como a gringa provavelmente não sabia dizer “Putaquepariu, doido!” ou “Fudeu, me jogaram num museu do caralho, literalmente!”, acabou saindo essa frase em inglês mesmo. O relato das testemunhas não especifica se depois de proferir essa sentença emblemática a turista americana saiu correndo pelas matas da Zona Oeste do Recife até ser atacada por alguma onça, de modo que devemos presumir que foi exatamente isso o que aconteceu.

O ateliê de Francisco Brennand é, enfim, um local originalíssimo, daqueles que só se encontram aqui na cidade do Recife e em nenhum outro lugar, para o alívio das beatas locais. Se você estiver visitando a cidade, se certifique de conferir este que é um dos locais mais fascinantes e, em grande medida, perturbadores da capital pernambucana.

Só lembre de não dar as costas a nada nem a ninguém.


 "Se o senhor continuar sorrindo pra mim, eu encho essa sua barba de bala."



terça-feira, 16 de novembro de 2010

O rei





O Sono não reina mais. Foi destronado pela rainha Insônia. Aquela vaca. Desde que se instalou no meu quarto, lá se foi o meu descanso. Brigaram, parece. Aliás, a Insônia, fresca como é, nunca se deu bem nem com o Descanso, nem com o Sossego e até hoje não se bica com a Paz. A safada expulsou todos da minha vida, ciumenta que é, e agora não consigo mais dormir. Ainda acho que é tudo culpa do emissário da rainha Insônia, esse tal de Mestrado em História. Nunca foi um sujeito lá muito confiável. Também pode ter sido o comparsa dele que provocou essa invasão, o tal do Calor Recifense. Esse aí já atacava o Sono há anos e ambos travavam uma guerra sazonal, sem um vencedor permanente. E agora, passo as noites com a realeza, perdendo as contas dos carneirinhos e rezando pela volta do meu amado Sono, hoje exilado sei lá onde.

Mas o verdadeiro rei um dia há de retornar.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Vida de N3rd: a Lan House, parte final


Ele chamou atenção logo ao entrar na loja. Trazia os cabelos em caracóis despenteados, uma barba que não se decidia entre a maturidade ou a adolescência, um olhar que denotava uma estupidez quase bovina e vestia camisas verde-limão, laranja fluorescente ou qualquer outra cor ofensiva ao nervo ótico, desde que exibisse a propaganda de qualquer micareta realizada em alguma cidade esquecida por Deus. Aquele homem parecia ser o subproduto dos movimentos intestinais do próprio satanás depois de uma rodada de sarapatel em algum mercado público da cidade. Deixou sua Kombi, mantida inteira por uma combinação de Durepox e uma profunda fé no divino, no estacionamento em frente à Lan House, destacando-se dos demais veículos nem tanto por seu caráter de transporte coletivo, mas sim pela profusão de adesivos que declaravam, em letras garrafais e ortografia inaceitável, frases tais como “Não mim inveje, trabalhe” ou “Na subida paciênçia, na descida dá licenssa”. Ao entrar no recinto, fez várias cabeças se voltarem em sua direção, nenhuma delas atraídas por sua beleza, que de fato não existia. Ao menos não dentro do conceito atualmente válido de ser humano.



 Mas conceitos mudam.



Nas primeiras semanas, aparecia esporadicamente, mais observando do que utilizando algum serviço. Estudava as partidas travadas entre os meninos e parecia ensaiar mentalmente os movimentos praticados pelos garotos mais experientes. Começou a jogar aos poucos, uma meia hora de cada vez, surgindo entre um trabalho e outro. Logo já se tornaria conhecido dos funcionários e dos outros clientes, construindo sólidas amizades com o vigia da galeria e com o flanelinha da esquina. Aumentou a frequência de visitas até chegar um momento em que parecia jogar mais do que trabalhar, a Kombi servindo meramente como meio de transporte entre sua casa e a Lan House. Até que finalmente chegou o dia em que ele decidiu levar seu vício para o próximo nível de loucura.

Passou o dia alternando entre jogar e discutir com crianças que tinham um terço da idade dele, ocasionalmente relaxando com algumas sessões de MSN, nas quais conversava com pessoas de apelidos suspeitos, tais como Dengosa_Kom_Pinto ou 30cm_DiMorenici. Seguiu sentado na poltrona até o final do meu turno e não levantou mais, renovando suas horas sem parar e já acumulando um débito considerável. Passei o turno para o próximo funcionário, alertando para a criatura que parecia ter se fundido à poltrona e larguei do serviço. Na manhã seguinte, fui trabalhar como outro dia qualquer e constatei que, sim, o desgraçado continuava no mesmo lugar. Havia passado o dia anterior e a madrugada toda colado ao mesmo lugar, jogando sem parar. Chequei o programa que administrava os usuários e vi horrorizado a conta acumulada que logo entraria na casa dos dígitos triplos. Liguei para René explicando a situação e ele, ingênuo, estava certo de que o kombeiro pagaria tudo no final. Com a gerência autorizando aquele show de horrores, fiz as pazes com meu Deus e fui trabalhar.

Passou-se um dia. Outro. E depois mais outro. Ele apenas se levantava da poltrona para realizar coisas inomináveis no sanitário e se encher das porcarias vendidas para alimentar os clientes mais corajosos. Engordava como um porco em época de abate, transpirando um suor amarelo que pingava pelo assoalho, acumulando-se nos braços da cadeira, que já exibia sinais de corrosão avançada. Crescia a olhos vistos, como um tumor maligno alimentado por doses maciças de raios-X e fast-food. Aquele ser grotesco já estava começando a se tornar uma atração turística local, atraindo pessoas que compareciam apenas para ver aquela aberração de perto. Os funcionários apostavam entre si em qual turno o corpo dele finalmente iria se render e buscar o doce alívio da morte. Eu rezava para que não fosse no meu.



 Não posso morrer agora, ainda tenho muito o que realizar!



Depois de uma semana dessa existência não natural, René finalmente juntou coragem para se aproximar da besta-fera criada por nós mesmos e propor um desconto em sua já extensa milhagem de computador, desde que ele quitasse sua dívida imediatamente. O monstro ruminou a ideia por alguns momentos e prontificou-se a pagar. Tinha apenas que ir buscar seu dinheiro em casa, onde havia esquecido sua carteira, provavelmente ao lado de sua humanidade. Para meu espanto, meu gerente e amigo aceitou a proposta e todos observamos assombrados a coisa erguer-se da poltrona, encerrando uma semana de imunda simbiose, e partir em sua Kombi caindo aos pedaços. A cadeira, que depois dessa provação apresentava uma silhueta de suor de formato vagamente humano em seu estofamento, já não podia mais ser utilizada devido ao terrível odor impregnado nela, misturando o cheiro de axilas rançosas, pedaços decompostos de salsichas empanadas e uma semana de peidos praticamente ininterruptos. Foi confiscada pela Saúde Pública para ser incinerada ou doada para alguma faculdade de Biologia, já não lembro mais.

Quando questionei René sobre a decisão de deixar o cara ir embora quando o mesmo, obviamente, não tinha a menor intenção de voltar e saldar sua dívida, meu amigo deu um longo trago em seu cigarro, com os olhos perdidos no horizonte de arranha-céus de Boa Viagem e sentenciou:

- Fred, ruim mesmo era se ele continuasse aqui. Antes uma semana de débitos perdida do que aquele encosto por aqui mais tempo.

Reconheci a sabedoria contida naquelas palavras e me consolei com o pensamento de que, algumas vezes, vencer não é uma opção. Nunca mais vimos o kombeiro e esse fato trouxe alegria e esperança aos nossos corações. O futuro, agora, parecia mais promissor e nos permitíamos até fazer planos, livres daquela presença horrenda em nosso ambiente de trabalho.

A Lan House faliu pouco tempo depois desse episódio.