sexta-feira, 16 de setembro de 2011

No meu tempo... Parte III






Na minha infância, a violência era mais do que gratuita. Era encorajada e distribuída na base do bamburim. Em alguns casos, literalmente, como quando aconteciam as comemorações de Cosme e Damião. Os santos gêmeos da igreja católica têm uma relação especial com as crianças e no seu dia distribuem doces para a meninada. Espécie de Halloween nacional, fazia com que hordas de moleques sujos e mal-educados formassem bandos unidos por uma frouxa lealdade e um desejo por confeitos baratos que beirava a psicose. Esses grupos saíam pelas ruas da região metropolitana do Recife, principalmente nos bairros mais periféricos, indo de porta em porta a procura dos doces.

Ai de quem não desse. Muitos vizinhos, desesperados, preferiam simplesmente jogar as balas por cima do muro, enquanto vigiavam as entradas das casas de panela em punho. Quando isso acontecia, todo o sentimento de união era imediatamente destruído e a pirralhada se engalfinhava como os animais que eram, enquanto dentro das casas, cachorros especialmente treinados para buscar a garganta de qualquer ser com menos de 1,30 de altura espumavam em antecipação, caso algum invasor tentasse se aproveitar da confusão ir direto à fonte dos bombons. Mais de um anão inocente perdeu sua vida para estas feras durante as comemorações de Cosme e Damião, tentando entregar uma carta ou um garrafão de água.



"...totó?"



Mas a verdade é que, quando a criançada precisava extravasar sua violência, qualquer desculpa servia. Prova disso era a brincadeira do babau, cujas regras simples, porém altamente respeitadas, mostravam que ninguém estava seguro, desde que não houvesse nenhum adulto por perto. Basicamente, bastava que alguém falasse alguma besteira proscrita pelo bando, ao que uma das crianças incitava as outras a encher de tabefe a cabeça do pobre coitado que tentou ser engraçado, mas que falhou miseravelmente. Se a vítima tentasse fugir, em vez de enfrentar seu destino como um homem, algumas rasteiras e voadoras eram permitidas, só para lembrar a todos como é que o mundo funcionava.


- Bora começar! Eu sou He-Man, pedi primeiro!

- Eu sou Mentor!

- Aríete!

- Stratos!

- GORPO!

- ...

- ...

- ...

-...é o quê, doido? Gorpo? Gorpo?!

- É, eu acho massa, ele voa...

- Massa um caralho! Porra de Gorpo! TU É FRANGO É?

- Mas Gorpo tinha namorada! O nome dela era Driele e...

- Aquilo era um traveco! E Gorpo é gay, todo mundo sabe disso!

- Mas...

- Só tem um jeito de resolver essa parada. Galera, diz aí, o que é que tem na vaca?

- LEITE!

- Não! Isso não! Por fav...

- O que é que tem no leite??

- NESCAU!!

- Nãonãonãonãonãonãonãonãonãonãonãonão...

- O que é que ele merece??

- BABAU!




"Não, não parem de bater...eu gosto de assistir..."



E aí o cacete comia, até que a mãe do infeliz chegasse ou as convulsões iniciassem, o que acontecesse primeiro. O menino brutalizado, uma vez recuperado, passava o resto da sua infância buscando descontar o babau levado, tornando-se mais uma peça da sangrenta engrenagem que moía crianças e cuspia homens feitos, cientes da única verdade irrefutável desse universo.

A vida é sofrimento.



Continua...