Recife é quente em todo lugar, mas dependendo de onde você mora, a coisa piora. Quando se vive em um apartamento na beira-mar de Boa Viagem, no 35º andar e tem-se a brisa marinha invadindo os cômodos e o azul do mar sem fim como proteção de tela da sua varanda, o calor é bem mais manejável.
Não é o meu caso.
Moro num conjunto formado por dois prédios de três andares cada um, na beira-canal, um endereço um tanto quanto menos nobre do que o citado acima. Aqui,a gente reza pro vento não vir do lado do Oeste. Quando isso acontece, é preciso abandonar o apartamento às pressas ou recorrer a máscaras de gás. O nome do meu prédio é Feitor. Fica ao lado do edifício Escravo. Não, é sério. Sério. Caralho, já falei que é sério. Não tem elevador, de maneira que sair de casa é sempre um exercício. Foi visitar um amigo ali perto? Descer escada, subir escada, banho. Vai comprar pão na esquina? Mesma coisa. Esqueceu a carteira na padaria? Se fudeu, já levaram, melhor nem sair de casa mais.
O conjunto é virado para o Norte, com o nosso apartamento no lado poente. O calor se acumula nas paredes durante a tarde e irradia pelos quartos durante a noite, em forma de microondas. Tenho certeza de que já estou estéril. Pra escapar, só indo para o janelão da sala. Que vai dar direto na lavanderia do vizinho do edifício Escravo. Nada como ter cuecas sujas e alheias como paisagem. A cozinha toda é um forno só. Não precisa usar o fogão, basta deixar a comida fora da geladeira que fica tudo pronto, espontaneamente. Demora mais um pouco, mas funciona, já testei. O quarto de empregada é considerado fora dos limites de habitabilidade humana. Nada pode viver lá, com a exceção de alguns poucos microrganismos que prosperam em temperaturas inaceitáveis para criaturas pluricelulares. Não sei se alguém já viveu nessa estufa maligna, mas às vezes, nas noites mais quentes de Verão, tenho a impressão de ouvir barulhos estranhos e lamentos sobrenaturais vindos daquele quarto. Alguma empregada já bateu as botas ali. E não perdoou. Possivelmente, derreteu até a morte e seu ectoplasma fundiu-se ao cimento das paredes. Por isso que esse apartamento saiu tão barato.
Mas enfim, chega de reclamar. Falemos de soluções. Até porque, eu prometi. Bem, é evidente que o calor seria ao menos medianamente dissipado caso houvesse vento circulando no apartamento. O problema é que, por motivos além da minha compreensão, as correntes de ar desviam daqui. Sério. Elas passam pelo lado de fora da janela e vão pra outros lugares. Ou voltam por onde vieram. Ou ficam apenas lá, observando, de sacanagem mesmo, sem nunca entrar. É por isso que desenvolvi o hábito de dormir ajoelhado em uma cadeira encostada na janela, com a cabeça e os braços jogados pra fora, ao alcance da brisa. Admito que existe uma série de problemas de ordem ortopédica e de segurança em relação à esse posicionamento. Pode ser desconfortável quando chove. Às vezes acordo cagado de pombo. Mas entre isso e cozinhar em meu próprio suor, vou pela primeira opção. Porém, só por segurança, se for fazer isso na sua casa, amarre uma corda na sua perna e conecte-a à sua cama.
Vai que tu é sonâmbulo.