quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Um quarto de vida, parte III






É fácil perder o foco nas pequenas coisas quando não existe ninguém cuidando de você. Banalidades tais como exercícios físicos regulares, higiene pessoal e uma alimentação minimamente sadia, por exemplo. E em um lugar onde a única cozinha é menor do que um guarda-roupa de uma porta, a geladeira é compartilhada entre nove pessoas e o fogão só serve de mesa para um fogareiro enferrujado de duas bocas, é preciso ser criativo na hora de comer. Uma opção é fazer as refeições fora de casa. O problema é que, além de ser uma alternativa bastante onerosa, é necessário ser tolerante com a qualidade dos alimentos servidos nas ruas do centro do Recife. Entre tapiocas de 50 centavos, acarajés baianos e pernambucanos, manuê, cocada, batata-frita, espetinho, cachorro-quente, churros, pipoca e aquela coisa sem nome que a tia da esquina vende, mas que de vez em quando foge correndo pela Avenida Boa Vista, a gente acaba consumindo um número alarmante de comidas suspeitas.

De maneira que é melhor se virar em casa mesmo. Pensei em uma dieta baseada inteiramente em Doritos e lavagens estomacais, mas a minha mãe me convenceu a comprar bananas. “Tem potássio”, garantiu ela, um tanto incerta quanto aos benefícios trazidos por esse nutriente em particular. Achei que uma palma duraria bastante tempo. O calor abafado do quarto, semelhante ao sovaco de um estivador do Cais de Santa Rita, se encarregou de amadurecer em pouco tempo uma dúzia de bananas verdes como o lodo que se acumula no quintal da pensão. Já no segundo dia elas adquiriram uma estranha cor amarronzada, com manchas negras se espalhando como um câncer vegetal. Malhadas, pareciam mais vaquinhas amarelas se amontoando no canto do balcão. Pareciam tremer levemente. No terceiro dia, as bananas começaram a se mover muito lentamente, rolando pelo chão em minha direção e emitindo pequenos suspiros arrastados sempre que eu entrava no quarto. Finalmente, no quarto dia, atingiram consciência própria. Hoje, eu só vou dormir depois de conversar com as minhas bananinhas falantes. Batizei cada uma com o nome de uma ex-namorada. Dona Mema, cujo quarto fica bem ao lado do meu, uma vez me perguntou com quem eu tanto conversava no celular. “Alguma paquera?”, perguntou ela com um sorriso banguela repuxando o rosto marcado. Expliquei a ela a minha relação com as bananas. Hoje, Dona Mema não responde mais o meu “bom-dia” de manhã cedo, mas em compensação também não pede mais para eu diminuir o volume do computador à noite.

A água potável também é uma preocupação constante. Dia desses pedi um garrafão pelo telefone e, confiando no tradicional atraso da entrega, fui tomar banho. No meio da chuveirada, escutei a voz incerta da senhoria, através da janela do banheiro, me avisando que o homem da água já havia chegado. Amaldiçoando a pontualidade dos entregadores do Centro, decidi interromper o banho para receber a mineral e pagar o homem. Foi então que eu percebi que havia esquecido a toalha. Do lado de fora, pendurada no pequeno quintal que separa meu quarto do resto da pensão. Soltei um rápido “Sossega o bigode que eu já tô indo!” pela janela e, como um ninja desprovido de equipamento, roupas e qualquer senso de moralidade, passei rapidamente do banheiro para o quarto, deixando um rastro de pegadas úmidas no corredor. O varal ficava bem perto da porta. Como eu havia pedido para o entregador me esperar, calculei que poderia sair, agarrar a toalha e voltar, com tempo suficiente para me enxugar e vestir uma roupa. Decidido, abri a porta, saí do quarto e estiquei a mão em direção ao varal, tudo em menos de um segundo. E foi nesse instante que escutei uma voz grave.

- Moço, é pra deixar a água aqui mesmo?

Lá estava o entregador, que havia decidido ser não apenas pontual, mas também prestativo, levando a água até a minha porta. Fiquei congelado onde eu estava, os pés plantados no cimento grosseiro do quintal, a mão estendida como uma garra apontada para a toalha, a bilola balançando suavemente ao sabor da brisa da Boa Vista. O pobre trabalhador me olhou com olhos tristes e experientes, de quem até já havia visto coisa pior no exercício diário da profissão, mas cujos anos ainda não haviam embrutecido seu espírito ao ponto de naturalizar o bizarro espetáculo que se desenrolava bem na sua frente. O homem, a agonia patente na voz, evitava contato visual com meus olhos, genitália e a minha presença nesse plano físico de maneira geral. Parecia se dirigir a uma telha meio solta no beiral da casa.

- Moço, olhe...se quiser, pode pagar depois, viu? Aliás, essa eu deixo por conta da casa, certo? Certo? Certo, né?

Depositou o garrafão no chão, girou sobre os calcanhares e, muito digno, despediu-se com um toque no boné da empresa. Saindo do transe de terror e vergonha, suspirei fundo, recolhi a encomenda e segui cabisbaixo para o quarto.

Teria que procurar o telefone de outra entrega de água mineral. De novo.


sábado, 10 de dezembro de 2011

Um quarto de vida, parte II






Para se sobreviver em um quarto alugado é preciso organização, o tempo todo. Qualquer coisa fora do lugar consome um espaço precioso, que poderia ser utilizado para acondicionar uma cadeira, um botijão de água mineral ou um pouco mais de oxigênio. Depois de pendurar tudo o que é possível nas paredes, você começa a olhar para o teto se lastimando por toda aquela área desperdiçada apenas com uma mísera lâmpada. O chão já não é mais visível, devido ao excesso de tranqueiras espalhadas no assoalho, cuja cor eu já nem lembro mais qual é. Para chegar até a cama, é preciso pular da porta e já cair de banho tomado. Leva algum tempo para adquirir a prática. Felizmente, o quarto não é mal-assombrado, mas por pura falta de espaço. Se algum poltergeist decidir se instalar aqui, vai ter que dividir o aluguel comigo. E dormir dentro do meu nécessaire. Sim, eu tenho um nécessaire. Quando é preciso carregar todos os seus itens de higiene a cada visita ao banheiro, é preciso ter um. O meu é preto com cinza, à prova d’água, vem com um barbeador e não pede informação no meio da rua. Ou seja, é coisa de macho.

Por falar em macho, o quarto ao lado abriga três. Três. É difícil ter a exata noção do apocalipse que se passa ali dentro. Uma vez eu dei uma olhada, de relance, quando esqueceram a porta entreaberta. Metade dos meus cabelos embranqueceu instantaneamente. A outra metade caiu. Tive a impressão de ter vislumbrado cascatas de papel higiênico usado brotando da lâmpada e tenho quase certeza de que escutei um barulho semelhante ao de uma porca parindo. Mas pode ter sido apenas a minha imaginação. É com esse pessoal, aliás, que eu divido o banheiro. A angústia inicial de compartilhar um cômodo tão íntimo com estranhos foi substituída pela resignação e por muito álcool gel, além da saudade constante de um WC que não seja frequentado por silvícolas urbanos. Dia desses, ao entrar no toalete do curso de francês, quase chorei de felicidade. Abri a porta e ouvi as vozes de milhares de anjos cantando. Uma luz divina emanava daquele vaso sanitário, me convidando. Parecia dizer “Fred, sua busca terminou. Arreie as calças e se entregue ao Divino!”. Nem estava com vontade, mas não perderia a oportunidade de descansar as nádegas em um verdadeiro trono de limpeza. Regiamente instalado, me permiti refletir acerca da miserável condição humana e cheguei a uma conclusão.

Possuir um Lar é ter uma privada para chamar de sua.



domingo, 4 de dezembro de 2011

Um quarto de vida





Depois de décadas de uma vida totalmente diferente do que se vê nos seriados e filmes americanos, a gente finalmente dá um freio na meninice e resolve que já deu, hora de pegar o beco, dar o pinote, sair da casa dos pais. O sonho americano e cinematográfico nos traz jovens bonitos e talentosos, se divertindo enquanto fazem um bico na lanchonete estilosa da esquina ao mesmo tempo em que conseguem pagar um apartamento digno, bem localizado e decorado com bom gosto, tudo isso enquanto perseguem incansavelmente seus sonhos de sucesso, pontuados por alguns leves e bem-humorados percalços.

Na realidade brasileira, a coisa é um pouco diferente. Permanecemos, por comodismo, tradição, medo ou pura falta de grana, sob as asas dos progenitores, sejam elas acolhedoras ou simplesmente resignadas. Sai-se de casa quando se casa, mais ou menos como diz o ditado. Muitas vezes, os casais vão se arrumando na casa dos pais, sogros ou até procuram seu próprio espaço por um tempo, voltando assim que a realidade golpeia com mais força. Uma combinação de baixos salários iniciais, apreensão quanto ao futuro, mercado imobiliário selvagem e pressão familiar prende os jovens brasileiros aos seus pais por tempo indeterminado, mesmo que essa mistura não dê liga. E, convenhamos, mesmo quando dá, a verdade é que convivência, especialmente entre parentes, possui prazo de validade.

Alugar um quarto na casa dos outros é uma experiência esquisita. Mas foi a opção mais viável que tive quando decidi, já bastante tardiamente, abandonar o ninho. Encontrei uma casa no tradicional bairro da Boa Vista, em uma rua tranquila, arborizada e de ladrilhos. A casa em si já viu dias melhores. O portão quebrado range ameaçadoramente para o visitante que ousar adentrar o jardim de plantas mortas, enquanto a brisa traz uma garoa fina de tinta descascada. Os hóspedes ficam no quintal, onde há um pátio e duas mangueiras. As árvores, quer dizer. Meu quarto fica ao lado de onde a proprietária, vamos chama-la de Dona Mema, reside com as filhas e duas cachorras, que latem furiosamente quando sentem a aproximação de qualquer estranho, animal, brisa suspeita ou espírito desencarnado. As cachorras, quer dizer, não as filhas.


- Mas Dona Mema, eu argumentava, olhando apreensivo para os cães que rugiam próximos da grade do terraço, a senhora acha uma boa ideia elas ficarem soltas assim?

- Não tem problema. Já já acostuma.

- Sei. Então, elas não avançam, né?

- Avançar, elas avançam, explicava Dona Mema calmamente, entre uma baforada e outra do seu cigarro barato, porém suficientemente blasé, mas se isso acontecer, pode pegar um cabo de vassoura e danar nelas.

- A...senhora deixa uma vassoura aqui no quintal pra isso?

- Não. Cada hóspede traz sua própria vassoura.


Uma vassoura de cabo resistente foi umas das minhas primeiras aquisições, mas eu insistia comigo mesmo que ela só seria necessária para limpar o quarto ou para descansar como um morcego atrás da porta, em dia de visitas indesejáveis. Por via das dúvidas, ando com ela para cima e para baixo e as pessoas pensam que eu ajudo a pagar o aluguel varrendo o quintal. Há apenas uma geladeira para todos os nove condôminos, de maneira que as compras de todos se misturam promiscuamente nas prateleiras refrigeradas. Pelo sim, pelo não, etiquetei as minhas, escrevendo meu nome e adicionando uma carinha feliz, no intuito de assaltar a consciência do desgraçado que considerasse roubar a minha pouca comida. Só havia encontrado etiquetas festivas e pensei seriamente se, ao marcar meu leite achocolatado com um “PARABÉNS PARA VOCÊ”, eu não estaria encorajando a vizinhança a levar as mercadorias como se fosse presente mesmo. Adotei o terrível e compulsivo hábito de contar quantas salsichas restam na embalagem antes de dormir.

Morar em um quarto alugado, como eu já falei, é uma experiência estranha, mas ao mesmo tempo libertadora. É preciso transcender certos hábitos e quebrar paradigmas cultivados durante anos de vida familiar. E para isso, não há nada melhor do que compartilhar um banheiro com mais dois estranhos. Todos os quartos possuem duas portas, uma que se abre para o quintal e outra para o corredor onde fica o banheiro. Um desses antigos, espaçosos, pé-direito alto e um empoeirado e anacrônico bidé. O armarinho não possui espelho e é preciso se arrumar no tato. Em um canto da parede de azulejos, fragmentos rasgados de frases de autoajuda, declarando que é preciso “amar a si próprio” e garantindo que “o sucesso virá”. A água do chuveiro é fraquinha, preguiçosa, não merece ser chamada de ducha. Um balcão de louça verde paira sobre a pequena pia, uma opção hidráulica infeliz que obriga quem for escovar os dentes a praticar cuspe à distância. E há uma privada. Dividida entre mais duas outras bundas, junto com os seres humanos que as acompanham, embora eu nunca os tenha visto e esteja supondo que existam, guiado pelo bom-senso e pelo que recordo das aulas de Biologia do Ensino Médio. É praticamente impossível olhar para o assento da privada sem pensar em todos os glúteos que passaram e passam por ali. Traseiros suados, peludos, tatuados, asseados, com espinhas, marcas de mordidas, manchas de batom. Sempre levo meu detergente para o banheiro comigo.

Às vezes, a Internet não funciona. Às vezes, a água para de correr. Às vezes, falta luz.


- É essa Católica aí do lado, explica Dona Mema, compenetradíssima. Usam energia demais, estouram o gerador, sobra pra gente aqui.

- E aí, o que a gente faz nessas horas?

- Compre logo fósforos e velas. Muitas. Acena uma quando faltar energia e aproveite, segue ela, dando um trago demorado no cigarro amassado, para rezar, que só faz bem.


A Rua do Lazer, reunindo estudantes da Universidade Católica, é um bem-vindo sopro de vida e movimento praticamente na esquina da casa. Há carros bem polidos, importados, guardados por flanelinhas zelosos, que parecem brotar do rejunte que separa os paralelepípedos da rua. Há rapazes de cabelo liso e camisa polo tomando cerveja para embriagar o tempo. Há meninas de salto alto e bochechas vermelhas se alimentando de olhares. A casa vizinha é uma academia de artes marciais, apregoando o ensino de uma infinidade de estilos de luta com nomes exóticos. O desenho de um samurai, espada em punho sobre um fundo vermelho, parece vigiar a rua, procurando sua honra perdida de ronin estático, uma gárgula oriental ignorada pelos marginais que perambulam pelas redondezas de madrugada. Á noite, se transfigura em bar, com mesas na calçada e música brega vertida aos borbotões de caixas de som empoleiradas no muro rachado. Saio sem bater o portão e perco alguns momentos me reorientando. O mar já não fica mais para o mesmo lado, parece. Decido por um caminho e olho para trás, para a casa que não é minha casa, nem dos hóspedes passageiros, nem mesmo de Dona Mema e suas cachorras. É uma espécie de sala de espera, um purgatório para os que não têm um lar, mas almejam construir um logo. Uma casa temporária, que existe apenas quando lá habitam pessoas. É onde eu moro e agora é minha casa também.

Por enquanto.



sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Bichos, parte 1: amo todos







Tenho dificuldade para confiar em pessoas que não gostam de animais. Para mim, muito da personalidade de um indivíduo pode ser adivinhada pela frase “Bichos? Detesto”. O medo eu até entendo. É uma coisa instintiva, primal. Incontrolável. Nossos antepassados passaram gerações levando carreira de tigres dentes-de-sabre e iguanas um pouco mais agressivas. Tudo bem ficar meio ressabiado ao se aproximar, digamos, da jaula do urso no zoológico. Ou do leão. Ou até do babuíno. Não confio naquelas bundas vermelhas. Já a velhinha que entra em pânico com a improvável possibilidade dos funcionários locais gritarem “Corram todos, a lhama fugiu!” provavelmente já deu tudo o que tinha que dar nessa vida. O que quero dizer é que o medo de bichos selvagens, até certo ponto, eu ainda compreendo. Mas de cães? Gatos? Calopsitas, meu Deus? Que mal uma calopsita pode fazer, além de humilhar a humanidade com sua coordenação motora perfeita e seu gingado sobrenatural?



Primeiro elas aprendem a dançar. Depois, roubam as nossas mulheres.



E também não boto fé nesse povinho que se diz amigo dos animais, mas que esconde um coração preconceituoso. Sim, odiadores de gatos, é com vocês que eu estou falando. Esse pessoal incita a cizânia no reino animal, levantando falsos e espalhando boatos infundados sobre os felinos. “Ah, o gato não gosta da pessoa, só da casa”. “Gato é um bicho traiçoeiro”. “Gatos tentam roubar a sua alma enquanto você dorme”. Provas. Quero provas. Tirando o lance de roubar almas. Isso já foi comprovado. Mas a verdade é que a maioria das pessoas tem medo da independência dos gatos. Como se sentir confiante com um bicho que arruma comida sozinho, consegue se locomover em praticamente qualquer superfície, sai sem avisar, toma banho sem ajuda e, ao que tudo indica, é capaz de enxergar, se comunicar com e, por que não, controlar os espíritos dos mortos? Só porque o bicho tem uma ligação direta com satanás, não quer dizer que não seja boa gente. Algumas pessoas de fato amam animais, ponto. Outras querem apenas um ser vivo para cuidar, dependente, fazendo com que sintam úteis. Vivas. Aí o bicho vira uma muleta, uma válvula de escape e uma terapia, na melhor das hipóteses.

Eu sempre amei animais. Nunca me senti o dono de nenhum bicho. A relação sempre foi de uma espécie de parentesco escolhido. Por isso, nunca tive problemas em conversar, brincar, ensinar, aprender e viver com os bichinhos. Me apego com facilidade a eles e a minha última e mais duradoura amizade foi com uma cachorrinha chamada Sherry.


E é a história dela que eu vou contar a vocês.



quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Texto de convidado: Cadê o rock que tava aqui?






Vi em um desses documentários da vida que a música punk surgiu, basicamente, do cansaço dos jovens ingleses pelo rock produzido no início da década de 1970. Segundo o filme, era uma resposta ácida e crítica ao rock progressivo, com seus intermináveis solos de teclado e letras sem pé nem cabeça compostas por hippies doidões de ácido. Resumindo: rock era coisa de universitário bundão. Entendeu? Ótimo.

Essa lembrança me voltou à memória no último sábado, enquanto eu acompanhava o festival Planeta Terra, em São Paulo. Lá estava eu em uma área chamada Claro Indie Stage. No palco, um cara de codinome Toro Y Moi (que na ocasião eu achava se tratar do nome da banda).

O lugar estava completamente lotado e aí... começa o show...

Toro Y Moi não é rock progressivo, é uma coisa mais pra eletrônico, mas a chatice que despertou os punks nos anos 70 estava toda lá. Os solos de sintetizador, as letras monossilábicas, não era música, eram barulhinhos de computadores. Parecia o som daqueles discos voadores de “Contatos imediatos do 3º graus”. Havia uma guitarra no palco, mas se ouvia uma harmônica aqui e outra lá.

Olhei para o lado. Um monte de jovens com topetes e moicanos encharcados de gel, vestido como estudantes de Hogwarts (gravatinhas e tal) com óculos de graus gigantescos achando aquilo fantástico.

É fato, minhas crianças, a gente precisa de um novo punk... ou de, pelo menos, algo que se aproxime.

Lembro dos primeiros anos da década de 1990, quando Planet Hemp, Chico Science e Raimundos deram um chute na bunda do lixo que a gente tinha aqui desde os anos 80 (os saudosistas do RPM e da Blitz que se fodam). Ou quando Kurt Cobain e toda a galera de Seattle colocaram o rock purpurinado do Poison e do Guns n Roses para correr.

Precisamos de alguém para sacudir a música pop. Fazê-la voltar a ser algo divertido, sem ser idiota. A gente não precisa mais de bandas alternativas formadas por nerds (só do Weezer, claro). A gente precisa de uma molecada que escute Ramones, beba cerveja barata, fale palavrão e pegue mulher. Chega de meninos que beijam meninos.

E não vou nem falar de NxZero, Fresno e etc.

Parece que o politicamente correto veio pra ficar. O máximo que eu vi de anarquia na música, nos últimos tempos, foi o arranca rabo de Zezé di Camargo e Luciano.

E o mesmo vale para cena daqui de Recife. O negócio tá tão brabo que um dia desses, eu tive saudades de Sheik Tosado. Puta que pariu.

Então é isso, me acordem quando o rock voltar a ser feito na periferia e não por estudantes de direito de faculdade particulares. Obrigado.



Texto escrito e gentilmente cedido pelo amigo, escritor e jornalista Geraldo de Fraga.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Universo Feminino





E nessa sexa-feira resolvi finalmente publicar aqui na Reclamação o texto que eu havia feito sob encomenda para as meninas do blog Universo Feminino! E aproveito para recomendar aos leitores uma passadinha por lá, não importando o sexo, estado civil ou se é originário dessa galáxia ou da próxima. O Universo Feminino tem três autoras e traz a visão das meninas sobre diversos assuntos, de moda à bom-humor, passando por cultura pop e, claro, homens. Fica a dica e quem quiser curtir, basta clicar aqui!

Enquanto isso, vão dando uma olhada no meu texto aí embaixo!

Se ela dança, eu olho








Olha só essa menina que balança
Olha só... Olha só...
Ela vai dançar a noite inteira
Ela vai cantar todas as músicas
Pra desfazer...
Pra desfazer a dor, e refazê-la
Quando a nossa flor se abrir inteira
Quando a nossa cor era vermelha
Pra se fazer do amor
A vida inteira
E a vida inteira amor... Satisfazê-la

Banda Eddie – Ela vai Dançar







Sou totalmente a favor da igualdade entre os sexos. Não há absolutamente nada que um gênero faça que o outro não seja perfeitamente capaz de realizar também. Homens não podem engravidar, mas podem adotar filhos e o que importa, no final, é ser um bom pai. Mulheres podem mijar em pé sem grandes problemas, desde que não seja no banheiro daqui de casa, porque faz uma sujeira do cacete. E todos são livres para fazer o que bem entenderem das suas vidas, tendo como limite apenas a própria consciência e a legislatura do seu país. Existe apenas, em minha opinião, uma área da expressividade humana que deveria se limitar apenas e tão-somente à atuação feminina: a dança. Não falo da dança acompanhada, de casal. Essa, evidentemente, exige um número mínimo e também máximo de participantes. Três configura a amaldiçoada dança do maxixe, indo de encontro às leis de Deus e do homem. E uma pessoa dançando caracteriza sedução. Ao menos no caso das mulheres. Homens dançando sozinhos são visões quase tão tristes quanto um mendigo discutindo com a própria garrafa de pinga. Poucas coisas são mais patéticas do que um pobre e confuso macho, geralmente alcoolizado, remexendo-se furiosa e descoordenadamente em uma pista de dança enquanto as outras pessoas, constrangidas, formam um círculo de segurança ao redor daquela aberração, em uma tentativa vã de isolar aquele fenômeno do resto dos homens locais. Essas coisas, afinal, são contagiosas.

Eu mesmo não posso dançar. Literalmente não tenho permissão. A Defesa Civil listou a minha dança entre as cinco maiores causas de catástrofe no Recife, atrás apenas de ataque de tubarão no calçadão da praia de Boa Viagem e passeata da Torcida Jovem na Agamenon Magalhães. Gerações de mulheres da minha família já tentaram me ensinar a dançar qualquer coisa que fosse, sempre com resultados trágicos. Minha tia, que Deus a tenha, é uma prova disso. E que Deus tenha os 17 bombeiros que tentaram nos resgatar daquela academia de dança em chamas. Ainda hoje, sempre que escuto a “Macarena”, me jogo no canal mais próximo. Por isso eu desisti. Nada de dança para mim. A não ser como espectador. Nisso sim, eu sou bom. Poucas coisas são mais prazerosas do que observar uma mulher dançando sozinha. Os cabelos cuidadosamente assanhados formam um véu sobre os olhos da mulher, deixando entrever apenas um sorriso quase infantil, enquanto seu corpo rodopia com uma graça que prova, de uma vez por todas, que Deus existe, mas de vez em quando tem umas conversas com o capeta. E mesmo em uma festa cheia de pessoas estranhas, você sente, de alguma forma, que ela está dançando para você, seu desgraçado sortudo. Cada movimento de quadris, cada jogada de cabelo, cada encontro fortuito de olhares, reduzindo homens feitos a meninos boquiabertos, que abem exatamente o que querem mas não fazem ideia de como chegar lá.

Mulheres, sigam meu conselho. Se você está pensando em dar um presente para o seu namorado/ficante/peguete/pau amigo, faça melhor: dance para ele. Quer dar uma roupa e não sabe o que ia ficar bem no moço? Invista a grana em uma lingerie mais ousada e dance para ele. Pensou em presentear o cara com um CD, gravado por você, com os bregas favoritos dele? Não perca tempo e monte sua própria seleção de músicas calientes, apropriadas para um bom strip-tease. Está considerando premiá-lo com uma viagem em um cruzeiro de luxo para Fernando de Noronha, com tudo pago e open-bar? Dê um pé na bunda desse mamão e entre em contato comigo através desse blog. Não, sério. Garotas, lembrem-se: vocês têm à mão uma arma capaz de, em poucos segundos, hipnotizar um homem, deixa-lo literalmente de quatro e implorando por mais. E não, você não precisa ser linda nem a campeã interestadual de pole dance. Na maioria das vezes, basta vontade, desenvoltura, um pouco de coordenação e bom-humor. E uma calcinha pequenininha nunca matou ninguém. Por isso, mulheres, sigam meu conselho e façam desse um mundo melhor. Dancem. Sambem na ponta do pé ou rebolem até o chão, pouco importa. Apenas dancem.

Os homens agradecem. E aguardam ansiosos.


quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Vegan Black Metal Chef





Dando continuidade ao embate vegetarianismo versus carnivorismo (sim, é preciso haver uma guerra, não existem áreas cinzas!), dei uma procurada pela Internet e eis que encontro o endemoniado programa de culinária Vegan Black Metal Chef. Como o título não tão sutilmente sugere, trata-se exatamente de um cozinheiro amante do metal extremo advindo das profundezas mais pútridas do underground e possuído por um desejo insano de arrancar a sua alma na base da overdose de soja. Durante o programa, o Chef, devidamente travestido como alguma entidade pagã  das florestas norueguesas, ensina pratos veganos, sem nenhum resquício de carne, humana ou animal, enquanto canta (ou berra) a preparação e os ingredientes em ritmo de Black Metal. Sim, a Internet é um lugar estranho. Mas as vezes se torna ainda mais bizarro. De qualquer forma, para o nicho altamente específico (imagino eu) de amantes de metal pesado mas que também não dispensam uma boa couve-flor gratinada, recomendo o endiabrado e original Black Metal Chef! Abaixo vai um vídeo mostrando bem a proposta da série enquanto que vocês podem ir diretamente ao site clicando aqui. Legal mesmo é a guia"Knives", que traz utensílios culinários roubados da cozinha de Jack o Estripador, com uma grande quantidade machados e adagas medievais. É isso aí.








METAAAAAAAAAAAAAAAAAAL (com alface) !!!!

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Segunda-feira sem carne




E hoje, pessoal, é o dia da segunda-feira sem carne. O blog Acerto de Contas traz um texto super legal explicando um pouco como é que funciona a idéia e recomendo a todos darem uma lida. Para os carnívoros patológicos como eu, sigam lendo o texto abaixo e não se sintam mais sozinhos em suas taras gastronômicas! Alienígenas comedores de carne, uni-vos!

Eu era um dinossauro






Em outra vida, eu era um dinossauro. Não dos grandes, imponentes, um brontossauro herbívoro. Devia ser mais como um velociraptor, leve, rápido, enxerido e carnívoro. Muito carnívoro. As proteínas exercem algum tipo de efeito sobrenatural sobre o meu ser. Adoro carne. Vermelha, branca, rosada, sangrando a cada corte para gente juntar o líquido vital com a farofa e improvisar no prato aquele molhinho de churrasco bem feito. Em outra vida, eu era um tupinambá. Hans Staden escapou da minha fome canibal, mas o Bispo Sardinha, que já tinha nome de comida, acabou na barriga de algum parente meu. Jamais conseguiria ser vegetariano. Não que eu não goste de verdura, sem trocadilho. Mas não poderia ser feliz na base do alface e da soja para sempre. Instintos de caçador se encontram dormentes em meu cérebro. Tudo bem que “caçar” hoje em dia significa “visitar o açougueiro”, mas eu não me importo. Não penso muito na vida pregressa daquele pedaço de bife assado no meu prato e jamais questionei quais seriam os últimos pensamentos que passaram pela cabeça de bode que enfeita aquela buchada que faz a alegria de interior pernambucano. A vida se alimenta de vida e eu decidi muito cedo que massacraria animais ao invés de pobres plantinhas que não podem sequer sair correndo dos seus agressores. Gosto de comer carne. Gosto de verdade. Sinto um prazer quase sexual ao saber que cada coração de galinha que eu como pertenceu a um membro vivo e, espera-se, sadio da espécie. Sinto-me uma espécie de Don Juan galináceo, colecionando corações roubados e deglutindo-os em uma orgia gastro-amorosa.

Quando meu lado selvagem se encontra mais próximo da superfície, me entrego aos prazeres da carne crua. Me enamoro de lindas tábuas acarpetadas de carpaccio tenro, avermelhado, quase mugindo ainda. Quibe bom é quibe cru, a carne moída de bichinhos sem nome se juntando para formar uma delícia intocada pelo fogo. Claro que aí é preciso ter cuidado. Sem cozinhar, a carne pode ser um veículo de doenças, algumas delas fatais. Nesse ponto, o porco sempre espalhou terror entre as donas de casa brasileiras. Minha mãe mesmo não se contenta em assar uma bisteca suína. Ela assa, frita, grelha, cozinha em fogo alto por 17 horas, esfrega limão, joga ácido em cima e chama o padre para exorcizar a carne. Já eu preparo o bicho guinchando. Tenho certeza de que meu intestino delgado foi substituído por uma lombriga de proporções bíblicas, que impede que eu engorde demais, mas ao mesmo tempo me mantém eternamente barrigudinho. Logo que como meu especial de porco, carinhosamente apelidado e "presuntinho", sinto os vermes passeando fagueiros pelo meu cérebro, sem dúvida os responsáveis pelas vozes em minha cabeça, sussurrando atrocidades tais como “Fred, essa velha está demorando demais nessa escada rolante! CHUTE A RÓTULA DELA!”. Estranhamente, a polícia não aceitou essa explicação. Nenhuma das vezes. Ao me libertar do regime de confraternização forçada nos chuveiros da prisão, me consolava com porções generosas de bacon dourado, galetos recheados e ensopados de peixe. E estremecia imaginando um futuro sem carne, caso todos os chineses do mundo resolvam exigir os hambúrgueres que sempre lhes foram negados. Talvez a carne seja o próximo petróleo, os Estados Unidos invadindo o Brasil começando ali, pelos pampas gaúchos e pelos latifúndios mato-grossenses, aproveitando para passar a mão na soja que cresce por lá.

E no fim da civilização, quando o inevitável apocalipse zumbi transformar pessoas em criaturas feitas de puro instinto animalesco, lá estarei eu, tranquilamente me alimentando do lombo da minha vizinha gordinha e antipática. Tivesse se cuidado mais, talvez houvesse ganhado de mim na corrida. Ironicamente, é possível que apenas os vegetarianos estejam livres da minha futura sanha canibal.

Deus me livre, carne com gosto de chicória.


PS – Fred é carnívoro convicto, mas não é maluco e adora animais, mesmo aqueles que não servem para comer, tais como gatos, cachorros, cavalos e torcedores de outros times que não o Sport Club do Recife. É a favor de um tratamento humano para todos os bichos, sejam domésticos ou criados para o abate e ocasionalmente faz referência a si próprio na terceira pessoa do singular.


sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O louco




Hoje no ônibus havia um louco. Desses loucos que são loucos de verdade. Que cheiram a doidice e a falta de banho. Tinha os cabelos mal pintados de amarelo e vestia o padrão esportivo de três times diferentes, combinados em uma miscelânea futebolística sem o menor sentido. A boca se mexia sem parar, dialogando com algo invisível aos olhos das pessoas sãs, arengando e arengando sem parar, os olhos arregalados, os gestos largos, insistentes, urgentes. Seus olhos pousavam ocasionalmente sobre um passageiro aparentemente aleatório, que se tornava o objeto de suas palestras ininteligíveis. Era o suficiente para a pessoa entrar em um profundo estado de concentração no que estava a sua frente, tentando em vão ignorar as palavras do homem que batiam e rebatiam pelos assentos do coletivo, provocando mais desconforto do que os buracos das ruas ou as lombadas negligenciadas pelo motorista. As pessoas olhavam para o louco e, em silêncio, desejavam. Desejavam que ele sumisse, desaparecesse dali. Desejavam com aquela vontade eugênica de conformidade, que homogeneíza as sociedades, que transforma tudo o que é diferente em uma agressão, um grito no pé do ouvido, um tabefe na cara. Tinham medo de respirar o mesmo ar do louco, de encontrar sentido em suas palavras. Tinham medo, sobretudo, dos seus olhos.

Eu também queria que ele fosse embora. Não suportava mais os murmúrios inarticulados do louco, as risadas mal abafadas dos passageiros, minha própria repulsa pela loucura alheia. Eu o encarava com raiva por ele existir ali, naquele espaço e naquele momento, uma parte desencaixada da realidade, saliente, protuberante, uma ponta partida no tecido da vida, incômoda, evidente. Aguda. Queria gritar para que ele fosse embora dali, que descesse em qualquer lugar, pois qualquer lugar é de serventia para os que não têm mais juízo. Olhei com ódio para a pele curtida de incontáveis dias de sol, sulcos profundos como vales esquecidos em uma pele de pergaminho, cujas palavras não faziam mais sentido. E foi então que ele me encarou. Eu já havia visto aquele olhar antes. Havia me acompanhando por toda a minha vida. Estava ali, a cada fracasso, a cada decepção, cada pequena derrota. Toda vez que meu coração foi partido, os cacos afiados se acumulando dentro do peito, cortando e recortando a minha alma. E cada vez que a vida me esmurrava, eu procurava os hematomas no espelho, encontrando apenas aqueles olhos. Olhos tristes, injetados, raivosos, míopes, verdes, loucos. Loucos. Então eu compreendi. O louco então encerrou sua ladainha. Desceu do ônibus, me lançando um último olhar, um misto de pena e solidariedade. Um olhar quase fraterno. Ele sabia.

E eu jamais poderia esquecer.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

As recifenses, parte 2: só na conversinha





Todo mundo sabe que as mulheres falam em um dialeto próprio, cheio de significados ocultos, frases de duplo sentido e armadilhas semânticas nas quais até os homens mais experientes estão passíveis de cair. Mas quando falamos das recifenses, a coisa assume proporções assustadoras. A mulher da capital pernambucana possui o poder de confundir os homens e transformá-los em tabacudos incontroláveis. A sua mente femininamente malévola é capaz de engendrar os diálogos mais obtusos, fazendo com que os homens percam não apenas a paciência, mas também a sanidade e a esperança de um amanhã melhor. Ao conversar com uma dessas amazonas tropicais, o homem já começa o diálogo derrotado e tudo o que pode fazer é tentar, ao menos, compreender o que diabos está se passando ali. Não é fácil. Djavan, que sem dúvida sobreviveu a alguns diálogos com as mulheres do Recife, sabe bem como é. Em um raro momento de coerência lírica, ele descreveu exatamente o que acontece todas as vezes em que um homem tenta estabelecer contato com a fêmea local.


Eu levo a sério, mas você disfarça
Você me diz à beça e eu nessa de horror
E me remete ao frio que vem lá do sul
Insiste em zero a zero e eu quero um a um
Sei lá o que te dá que não quer meu calor
São Jorge por favor me empresta o dragão
Mais fácil aprender japonês em braile
Do que você decidir se dá ou não


O que nos leva a um dos fenômenos mais comuns da relação homem/mulher na capital de Pernambuco. A enrolação. Claro, ninguém supõe que a mulher, ainda que esteja doida pelo cara, vá se jogar no colo dele enquanto arranca a própria calcinha com uma das mãos e com a outra vá fazendo sinal para o táxi mais próximo. Acreditem, já sugeri esse tipo de estratégia e minha noite sempre terminou na delegacia. Ao menos lá eu sempre arrumava companhia. Várias companhias. Companhias brutas, que não aceitavam um “não, pelo amor de Deus, lá não!” como resposta. Mas eu divago. Enfim, ninguém espera esse comportamento. Mas o jogo duro local é algo lendário e a recifense quase sempre sente que, caso o homem não termine a noite lambendo o salto do seu sapato, ele não se esforçou o suficiente e, portanto, não passa de um pobre coitado morto nas calças cordão molhado que mija no pé. Daí que surgem os diálogos típicos da balada do Recife.


Mulher recifense 1: Ai, meu Deus, ele tá me olhando! Ele tá me olhando!

Mulher recifense 2: Calma! Não fique nervosa! Tudo bem, ele parece uma mistura de Gianechinni com Johnny Depp, mas mantenha a calma! Jesus, Maria e José, um homem desses lá em casa...

Mulher recifense 1: E o sorriso? Parece ser uma simpatia ele, ai que sonho...

Mulher recifense 2: Eita! Lá vem ele! Vai falar contigo! Postura amiga, postura!

Homem perfeito: Oi, boa noite, tudo bem?

Mulher recifense 1: E então.

Mulher recifense 2: Tudo indo.

Homem perfeito: Ah, que...bom. Então. Eu sou novo aqui na cidade, não conheço ninguém.

Mulher recifense 1: Sei.

Mulher recifense 2: Que cu, heim?

Homem perfeito: É...pois é. Será que...será que vocês se importavam de eu sentar aqui na mesa com vocês?

Mulher recifense 1: Tá me achando com cara de puta?

Homem perfeito: ...oi?

Mulher recifense 2: Tá pensando o que da minha amiga? Que ela é rapariga? É? É?!

Homem perfeito: Não! De jeito nenhum! Eu só queria...eu...eu nem sei o que significa essa palavra! Mas eu não tava pensando isso não! Só queria conhecer vocês melhor e...

Mulher recifense 1: Ah, aí pensou que só era chegar chegando e tava tudo certo, né?

Mulher recifense 2: Que era só ser bonito, simpático e educado e já ia dar uns pegas na minha amiga, né? Amiga, deixa eu ver aqui a tua testa rapidinho. Não, não tá escrito “VEM QUE EU TÔ FACINHA” não. Só ele que leu isso mesmo.

Homem perfeito: Mas eu...eu nem...

Mulher recifense 1: Vem de fora e pensa que vai passar o rodo aqui, né? Cabra safado! Ah, se eu ainda andasse armada...

Mulher recifense 2: Aposto que tem pau pequeno. Repara só. Tem pauzinho, né? Por isso anda de carrão importado, tinha que compensar alguma coisa.

Homem perfeito: ...

Mulher recifense 1: Olha a carinha dele. Vai chorar, é? É mulherzinha, é?

Mulher recifense 2: Isso, sai correndo! É o melhor que tu faz! Seu bosta!

Mulher recifense 1: Ai amiga...ele foi embora mesmo!

Mulher recifense 2: Já desistiu? Por isso que não tenho paciência com homem de fora.

Mulher recifense 1: E olha que eu facilitei, heim?

Mulher recifense 2: Demais. Tava ficando feio já, amiga. E outra. No mínimo, ele era frango. Relaxa.

Mulher recifense 1: Ai, ai...mas era um gato, viu?

Mulher recifense 2: Ô lá em casa...


Pois é. Não é fácil. Mas pode ficar pior.

Bem pior.




quarta-feira, 19 de outubro de 2011

As recifenses







As recifenses são as mulheres mais difíceis do mundo. E sabem disso. Por Deus, elas gostam disso. É uma fama construída e espontaneamente viralizada pelos traumatizados homens da capital pernambucana. Além, claro, dos pobres coitados que, turistando pelos lados de cá, acabam quebrando a cara e o espírito contra a impávida muralha de negativas da fêmea local. Exemplos dessas tristes derrocadas são frequentes e comuns. Quase sempre, trata-se de algum ingênuo segurando uma simpática, embora autodestrutiva, placa com os dizeres “Me beije, sou carioca”. E isso durante o carnaval, período de maior descontração, liberdades e libertinagens, festa da carne e tudo mais. O escárnio com o qual esta abordagem pouco criativa, porém honesta, é recebido pela recifense é de fazer o coração doer. O homem do Recife já não alimenta muitas esperanças de contato mais íntimo com o sexo oposto, observando com uma simpatia desapaixonada os esforços frustrados dos visitantes. Há quem diga que a crescente população homossexual da cidade tem raízes nessa questão, mas é exagero. Ainda existem aqueles guerreiros que, movidos por instinto ancestral ou puro desespero de causa, ainda vão à luta, dispostos a defender sua honra, masculinidade e, se possível, pegar em um peitinho. Esses semideuses caminham entre nós, cientes de que, se conseguem pegar uma mulher do Recife, são capazes de, facilmente, pegar a mulher do sultão, de burca, na praça em frente à mesquita. Sem falar árabe. E depois ainda pegam a mãe dele, por puro tédio.

O grande sociólogo pernambucano Gilberto Freyre tentava explicar o recato quase patológico da recifense através da herança cultural lusitana. Os portugueses, tão ciumentos quando melancólicos, costumavam esconder dentro de casa sua esposa, filhas e qualquer coisa remotamente do sexo feminino, sempre prontos a defender o bom nome da família. Henry Koster, britânico criado em Lisboa, ao passar algum tempo no Nordeste do Brasil, lá pelo século XIX, se decepcionava ao tentar obter um vislumbre sequer da mulher recifense, dentro de casa uma entidade invisível, saindo à rua sempre coberta por um longo véu a protegê-la de olhares cobiçosos, reais ou imaginários. Ao mesmo tempo, costumava flagrar, em uma mistura de espanto e deleite, as filhas de algum grande senhor de engenho, veraneando na capital pernambucana, a tomar despreocupados e desinibidos banhos no rio Capibaribe, a pele branca contrastando com os cabelos negros, a água turva de mangue mal escondendo os corpos nus. A recifense é, portanto, uma provocadora por herança, genética e criação. Seu prazer é o flerte, aproveita a viagem muito mais do que o destino, onde muitas vezes nem se chega. Munida de um escudo de recato, ocasionalmente deixa entrever a carne proibida cuja armadura esconde. E os homens, coitados, perdem a batalha antes mesmo de a guerra começar. O que não os impede de seguir lutando.

Nos próximos posts, vamos analisar o comportamento da mulher do Recife, verificando seus hábitos e defesas naturais, em uma tentativa de fazer com que os homens, caso não consigam se dar bem, ao menos tenham capacidade de salvaguardar alguma medida de hombridade enquanto são miseravelmente escorraçados por estas sereias de rio, verdadeiro terror dos navegantes experientes e marinheiros de primeira viagem.


PS – O Blog da Reclamação não se responsabiliza por corações partidos, espíritos despedaçados e autoestimas destruídas. Na dúvida, siga o exemplo dos homens locais: procure o boteco mais próximo, peça pelo brega mais bisonho que você encontrar na radiola de ficha e fique só em sua mesa até que a auto piedade transforme você em uma casca vazia desprovida de alma. Ou então mude de cidade, o que for mais barato.



sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Detesto ônibus II: objetos irremovíveis ou a Guerra das Bundas





Tomei o ônibus para mais uma viagem de casa para a faculdade. Distraído, imaginava quais vergonhas eu passaria durante a aula quando um indivíduo, portando um capacete de motoqueiro, sentou ao meu lado. Tinha ombros largos, cara de poucos amigos e, aparentemente, um órgão genital de proporções tão dantescas que exigiam que ele mantivesse as pernas tão abertas quanto uma prostituta em dia de pagar o aluguel. Despejou-se no assento como se fosse a poltrona da sua casa, fazendo pouco caso do meu espaço pessoal. Sentindo minha moral atacada e minha individualidade subitamente invadida, fiz o que qualquer homem com um mínimo de respeito próprio faria: contra-ataquei. Forcei minha presença para retirá-lo do meu lado da fronteira, aproveitando-me da desorganização do assalto inicial. Desacostumado a uma resistência tão feroz, o sujeito recuou até sua porção do assento. Com o canto do olho, estudamos um ao outro, medindo forças e fraquezas, buscando adivinhar a disposição do inimigo, tentando descobrir quem, afinal, iria mais longe na defesa de sua soberania glútea. E assim começou o conflito que viria a ser conhecido nos Anais da História como a Guerra das Bundas.

Naquela guerra fria particular, nenhum milímetro de território seria sacrificado. Cada respiração profunda se configurava em uma tentativa de demover o inimigo. Resoluto, eu buscava me ancorar ao assento utilizando a minha bunda, as nádegas funcionando como pseudópodes de um organismo unicelular determinado a sobreviver a um combate de morte com um oponente ancestral. Nenhuma fraqueza podia ser demonstrada. Em momento nenhum eu cedi à pressão constante. Nem mesmo quando o ônibus saltou por cima de um quebra-molas, fazendo com que meu oponente e eu aterrissássemos, impassíveis, sobre nossos respectivos sacos escrotais. Muito menos quando o motorista do veículo, ensandecido, passou desembestado pelas próximas sete lombadas, destruindo para sempre minhas esperanças de constituir uma família com filhos ou mesmo de manter uma ereção por mais de dez segundos. Eu era uma rocha estéril, uma árvore petrificada eternamente enraizada no banco do coletivo. Na minha frente, uma senhora calva e de aspecto sujo, penteou seus cabelos ralos com uma escova de bolso. Uma avalanche de caspa voou em direção aos meus olhos, como flocos de neve de um horrendo inverno nuclear. Nem mesmo pisquei.

Em certo momento, meu adversário fechou os olhos. Teria caído em um sono exausto e povoado de terríveis pesadelos envolvendo sangue, morte e glúteos masculinos? Eu rezava para que fosse assim. Ou estaria ele concentrado, orando para algum deus maldito em busca da força necessária para sobrepujar a minha vontade? Em silêncio, eu pedia às entidades sobrenaturais que tomassem posse de algum desafortunado motorista e o fizessem enfiar seu carro embaixo do ônibus, fazendo o coletivo capotar e arremessar meu vizinho de assento janela afora, defenestrando meu competidor e encerrando de vez aquele conflito. A pressão continuava e a minha bunda, travada em uma cãibra inumana pelo que pareceram horas, havia se tornado apenas um receptáculo de dor e cujo sofrimento aumentava exponencialmente a cada sacolejada do veículo. Subitamente, algo mudou. A barreira humana do meu lado esquerdo pareceu estremecer, fraquejar. Finalmente, o motoqueiro se ergueu e eu me preparei, automaticamente, para levar uma capacetada no nariz. Mas o golpe jamais veio. Em júbilo, percebi que ele finalmente havia chegado à sua parada. Creio que detectei uma lágrima brilhante no canto mais esquecido do seu olho direito, mas pode ter sido apenas uma impressão. Meu braço estava parcialmente gangrenado, minha genitália totalmente inutilizada e meu traseiro havia perdido toda e qualquer sensibilidade, criando perigosas possibilidades para um futuro permeado de ônibus e metrôs lotados. Mas eu estava feliz.


Havia vencido.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Detesto ônibus, parte I: despida de sanidade





Detesto ônibus e o sentimento é mútuo. Ciente dessa volátil relação kármica entre mim e meu transporte diário, o universo costuma testar a minha paciência me colocando em situações que jamais deveriam acontecer fora de um filme de David Lynch. Essa semana mesmo eu peguei o coletivo, como faço todos os dias de minha desgraçada vida de pedestre. Me posicionei no solitário assento imediatamente atrás da jaula de vidro que segrega idosos, gestantes e outras minorias do resto do ônibus, mas que garante que essas pessoas sigam seu caminho sentadas e fora da habitual zona de assalto do veículo. Na minha frente, de costas para mim e isolada por uma divisória de vidro, acomodou-se uma senhora de cabelos brancos e olhar distante. Assim que sentou, começou a remexer alguma coisa dentro de sua enorme e desproporcional bolsa. Finalmente encontrando o que queria, ela abriu a janela e, quando o ônibus se deteve na parada, jogou o objeto pela janela. Horrorizado de ver uma idosa arremessando lixo pela janela do coletivo, voltei meu olhar para o item descartado, para saber a que me referir na hora de passar uma descompostura na velha mal-educada. Meus olhos se fixaram em um molambo caído pateticamente na lateral do veículo, próximo ao pneu. O que eu vi vai me acompanhar pelo resto da minha vida.

Era um sutiã.

Ele era velho, grande e inescapavelmente bege. Aquela senhora de aparência serena havia acabado de atirar seu sutiã pela janela do coletivo, quase acertando o para-brisa do carro que tentava ultrapassar o ônibus. Com o cérebro impactado pelo absurdo da situação, fiquei em dúvida se ela havia pescado a peça de sua bolsa ou se havia removido a que ela estava usando naquela hora.



Tipo assim. Só que com uma octogenária. Em um ônibus sacolejante.


Ao lado dela, um senhor trêmulo observava atentamente, talvez excitado com a perspectiva de um strip-tease ao vivo e gratuito, sem dúvida o primeiro depois de muitas décadas de secura geriátrica. Ao atentar para essa possibilidade, minha mão automaticamente agarrou a barra de emergência da janela. Tentando manter a calma, contemporizei que a desapegada senhora ainda não havia, ao menos, jogado fora sua calcinha. Agradeci a Deus pelos pequenos milagres do cotidiano e passei a observar a velha com atenção e uma certa medida de temor, protegido pela barreira de vidro e metal que, eu agora percebia, servia para separar o resto do ônibus daquela área em particular, não o contrário. De repente, a velha jogou mais uma peça de roupa pela janela. E mais outra. Outra. A intervalos regulares, a idosa ia jogando o conteúdo da sua bolsa pela Av. Conselheiro Aguiar, enquanto motoristas atônitos tentavam desviar daquela chuva de brechó. Me perguntei o motivo daquela insanidade. Talvez fosse uma maneira altamente informal de doar suas roupas para as moradoras de rua do Recife que já estivessem na melhor idade. Uma espécie de drive-thru filantrópico. Ou quem sabe ela estivesse criando um caminho de roupas, como as migalhas de João e Maria ou o fio de Teseu, ciente de que o Alzheimer não permitiria que ela lembrasse o caminho de volta para casa. Certamente subiria em um ônibus aleatório quando desejasse retornar e gritaria, triunfante, para o motorista confuso: “Siga aquela calçola! Depois aquela meia! E...bem...aquela cueca também!”.

Imaginei minha avó possuída por uma vontade semelhante à daquela pobre mulher, ensandecidamente jogando suas roupas pela janela do ônibus e viajando pelada, os trancos e solavancos do veículo criando um espetáculo de horror indizível. Apenas o mais básico dos instintos de autopreservação me impediu de encerrar minha atormentada existência esmagando minha cabeça na catraca do ônibus. Ao meu redor, talvez por puro constrangimento, as pessoas pareciam nada perceber, concentradas em pontos invisíveis da geografia urbana recifense enquanto, bem nas suas vistas, uma senhora de idade avançada descarregava o conteúdo do seu guarda-roupa pelas ruas da cidade. A absoluta falta de reação dos passageiros, com exceção do velhinho pervertido, apenas deixava o tom de pesadelo kafkiano da coisa toda ainda mais pronunciado. Seria louca? Ela era, ao menos, lúcida o suficiente para distinguir a parte de não pagantes do resto do ônibus, fazendo valer seu direito de idosa ao mesmo tempo em que abusava da complacência social adquirida com a idade. O mais provável é que ela simplesmente não se importasse mais com a opinião alheia e sentisse que, se as lixeiras da cidade não corriam emparelhadas aos ônibus para receber suas roupas descartadas, então a prefeitura é que devia tomar algum tipo de providência, não ela. Procurei me imaginar ao chegar naquela mesma idade, cerca de 50 anos no futuro, talvez atirando minha coleção de DVDs pela janela de um trem flutuante, enquanto as pessoas lá embaixo eram bombardeadas por anacrônicas amostras de cinema em apenas duas dimensões. Perturbado por aqueles pensamentos, pedi parada e desci, enquanto a despirocada senhora engatava uma animada conversa com o cartaz a sua frente. Saquei meu celular e liguei para a minha avó.

Pedi sua benção e também que ela nunca, jamais, sob hipótese alguma andasse de ônibus no Recife.