sábado, 10 de dezembro de 2011

Um quarto de vida, parte II






Para se sobreviver em um quarto alugado é preciso organização, o tempo todo. Qualquer coisa fora do lugar consome um espaço precioso, que poderia ser utilizado para acondicionar uma cadeira, um botijão de água mineral ou um pouco mais de oxigênio. Depois de pendurar tudo o que é possível nas paredes, você começa a olhar para o teto se lastimando por toda aquela área desperdiçada apenas com uma mísera lâmpada. O chão já não é mais visível, devido ao excesso de tranqueiras espalhadas no assoalho, cuja cor eu já nem lembro mais qual é. Para chegar até a cama, é preciso pular da porta e já cair de banho tomado. Leva algum tempo para adquirir a prática. Felizmente, o quarto não é mal-assombrado, mas por pura falta de espaço. Se algum poltergeist decidir se instalar aqui, vai ter que dividir o aluguel comigo. E dormir dentro do meu nécessaire. Sim, eu tenho um nécessaire. Quando é preciso carregar todos os seus itens de higiene a cada visita ao banheiro, é preciso ter um. O meu é preto com cinza, à prova d’água, vem com um barbeador e não pede informação no meio da rua. Ou seja, é coisa de macho.

Por falar em macho, o quarto ao lado abriga três. Três. É difícil ter a exata noção do apocalipse que se passa ali dentro. Uma vez eu dei uma olhada, de relance, quando esqueceram a porta entreaberta. Metade dos meus cabelos embranqueceu instantaneamente. A outra metade caiu. Tive a impressão de ter vislumbrado cascatas de papel higiênico usado brotando da lâmpada e tenho quase certeza de que escutei um barulho semelhante ao de uma porca parindo. Mas pode ter sido apenas a minha imaginação. É com esse pessoal, aliás, que eu divido o banheiro. A angústia inicial de compartilhar um cômodo tão íntimo com estranhos foi substituída pela resignação e por muito álcool gel, além da saudade constante de um WC que não seja frequentado por silvícolas urbanos. Dia desses, ao entrar no toalete do curso de francês, quase chorei de felicidade. Abri a porta e ouvi as vozes de milhares de anjos cantando. Uma luz divina emanava daquele vaso sanitário, me convidando. Parecia dizer “Fred, sua busca terminou. Arreie as calças e se entregue ao Divino!”. Nem estava com vontade, mas não perderia a oportunidade de descansar as nádegas em um verdadeiro trono de limpeza. Regiamente instalado, me permiti refletir acerca da miserável condição humana e cheguei a uma conclusão.

Possuir um Lar é ter uma privada para chamar de sua.



6 comentários:

  1. Uau, post inspirado! Me engasguei ao chegar em "tenho quase certeza de que escutei um barulho semelhante ao de uma porca parindo". huahuahauhauaua

    ResponderExcluir
  2. Cara, você é muito bom. Que escrita fantástica. Conheci hoje o seu blog e já adicionei aos meus favoritos. Muito tempo que não leio um blogueiro de tanta qualidade. Parabéns.
    Lohan.

    ResponderExcluir
  3. Muito obrigado, Lohan! Infelizmente, não tenho escrito tanto quanto gostaria, essa mudança toda me deixa meio sem tempo e sem cabeça. Mas continue acompanhando e dá uma olhadinha nos textos antigos!

    ;)

    ResponderExcluir
  4. Fred, incrível como teus textos conseguem prender a atenção de quem lê. Todos que li são excelentes. Competente e esforçado do jeito que vc é já já estarás numa casa melhor. Pat

    ResponderExcluir
  5. Pelo menos a privada utilizada para este post é meramente ilustrativa!

    ResponderExcluir
  6. HAHAHAHA Muito bom esse texto! Só lembrei da cena de Trainspotting e Mark Renton em busca de uma privada descente! :))

    ResponderExcluir

Vai, danado, reclama!