sábado, 6 de março de 2010

Miopia

 


Dessa vez eu queria aproveitar o espaço pra fazer uma reclamação em relação a algo extremamente pessoal: minha miopia. Tá, tem gente que tá pior. Tem gente que é cego. Tem pessoas por aí que são cegas e pobres. E tem cara por aí que é cego, pobre e corno, o que parece confirmar a hipótese de que Deus tem, de fato, um senso de humor doentio. Enfim, problema deles. E falo isso sem medo de represálias, já que, se essas pessoas se encaixam nas categorias anteriormente citadas, são incapazes de ler as atrocidades que eu escrevo aqui. Mas enfim. Minha miopia. Hoje em dia, ela fica em algo em torno de 0 alguma coisa e 1 e um pouquinho. Não é muito, mas não deveria ser nada, porque fiz uma merda de uma cirurgia corretiva cerca de sete anos atrás, justamente pra acabar com o problema. Uma cirurgia a laser, veja bem. Não consigo pensar na palavra “laser” sem que me venham na cabeça imagens de naves alienígenas e pistolas de raios. Juro que esperava que o médico que ia me operar estivesse portando um sabre de luz. Não foi bem assim. Na verdade, esperei pra caralho numa salinha, vestindo aquelas roupas de hospital que te deixam de rabo de fora. O médico, não satisfeito, decidiu popular a dita sala com umas três velhinhas beirando os noventa. Todas com o rabo de fora também. Até hoje sinto calafrios quando chego perto da minha avó.
A cirurgia em si é até rápida, mas chega a ser traumática de tão bizarra. Primeiro, afogam teu olho em colírio analgésico. Você coça o olho e, sem encontrar resistência, já que tá tudo adormecido, acaba cutucando o cérebro. Então, o sádico de plantão, também conhecido como cirurgião oftalmológico, coloca umas presilhas no teu olho, que te impedem de fechá-los e até de piscar! Putamerda! Laranja mecânica, alguém? Depois, usam uma espécie de fatiadora de frios...sabe, daquelas que tem na padaria e corta o fiambre das criancinhas. Eles usam aquela merda pra cortar uma tampinha na membrana que recobre a tua córnea, expondo-a ao laser e ao prazer pervertido do médico. E tu pensa que o colírio pára? Ficam jogando o troço no seu olho sem dar trégua, sem que você possa piscar ou fazer qualquer coisa que alivie sua agonia. Chega um momento em que você tem dois filetes eternos escorrendo dos seus olhos até os ouvidos, compostos de colírio, lágrimas e desespero, amargo desespero. O médico então, gargalhando loucamente, se utiliza de uma pinça, possivelmente corroída pelas lágrimas de incontáveis vítimas anteriores e levanta a porra da tampinha da sua córnea! Há um zumbido horrendo, como o lamentar dos inocentes sendo atirados ao fogo do inferno e a máquina laser, operada pelo maníaco que se diz médico, começa a queimar a sua córnea. Pois é. Dá pra sentir o cheio de queimado. Da córnea. Traumatizou? Ótimo, porque é bom você ter certeza do que quer quando faz uma cirurgia assim, já que a minha miopia, por exemplo, não foi totalmente curada. E eu paguei por isso. É, eu sou um zé buceta, admito.
Mas isso foi há anos atrás. Hoje em dia, as técnicas melhoraram consideravelmente e, se você tiver um plano de saúde decente, nem vai precisar pagar por isso. Minha amiga Déa fez recentemente e tá boazinha. Antes da cirurgia, ela não conseguia distinguir um abajur do irmão dela. Precisava usar óculos pra achar as lentes de contato. Basicamente, a visão dela era uma eterna tela expressionista, o que, pensando bem, é até uma maneira foda de encarar a vida, ainda que pouco prática no dia-a-dia. Saiu da cirurgia já enxergando tudo, certamente maravilhada com todas as cores e formas que agora se apresentavam à sua vista, distinguindo detalhes antes invisíveis para ela, como borboletas, pequenas flores, carros, edifícios, essas coisas.
E eu continuo aqui, ainda usando minhas muletas visuais, também conhecidas como óculos. Eles se perdem, quebram, desgastam, sujam, arranham e quando vou andar de bicicleta na beira da praia, voltam com tanto sal nas lentes que daria pra temperar um bife. Minha miopia não zerou, só minha conta bancária.
Por isso, crianças, quando pensarem em fazer uma cirurgia, não pensem que a palavra “laser” vai ser garantia de bons resultados. Procurem conhecer o histórico do médico que pretende realizar a operação em você e, caso você não fique totalmente satisfeito com a ficha dele, não se constranja.
Mande ele enfiar o laser dele no cu e procure outro profissional. Melhor do que se arrepender depois.



quarta-feira, 3 de março de 2010

Na praia

 

Preciso confessar uma coisa. Como reclamador profissional, sou cheio de frescuras. Cheio mesmo. Uma delas é com coisas nojentas. Tem gente que passa mal vendo sangue, desmaia, bota os bofes pra fora, etc. Eu sou capaz de fazer isso se tiver alguém vomitando do meu lado, ou, pior, dando um cagão. Imagina. Não, deixa pra lá, não imagina. Então. Pode sangrar a vontade. Faço até o torniquete, recolho o membro amputado, junto os pedaços de miolo e boto num tupperware. Bronca zero. Mas as nojeiras...
Você pode até contar uma história nojenta pra mim. Não tem problema. Meu cérebro altamente treinado é capaz de interpretar histórias de vários níveis de sebosice, tomando o cuidado de não transformar nada do que está sendo dito em imagens. Certamente, uma salvaguarda mental visando proteger minha sanidade. Coisa de gente evoluída. Mas as vezes as coisas nojentas acontecem com você. Aí, velho, não tem reclamação nesse mundo que vá te salvar.
Por exemplo, não tem Lucy, minha amiga alemã? Tem sim. Já disse que tem. Então, aí ela morou aqui um tempo, cerca de seis meses. Gostou tanto que até trouxe os pais pra conhecer. Os alemães, de maneira geral, são um povo gente fina e sem frescura. As vezes sem frescura até demais. Mas aí, tá. Eu, bom anfitrião que sou, resolvi levar os coroas pra Calhetas. Quem já foi, sabe que lá é bonito pra caralho.  Daí, estacionei o carro, descemos aquele caminho Íngreme e chegamos à areia. Apoiei uma perna sobre umas das muitas pedras que parecem jogadas ao acaso na praia, fiz um gesto largo abrangendo a areia branquíssima, as formações rochosas irregulares, o céu límpido, o mar verde-azulado e comecei o seguinte diálogo:
Eu: E aí, o que acharam?
Lucy: Nossa, Fred, que lindo!
Pai de Lucy: Aqui é, realmente, o paraíso.
Mãe de Lucy: Eu acho que vi um menino fazendo cocô na água.
Eu: O que?!
Mãe de Lucy: Sim, mas um cocô bem pequeno. Não se preocupe.
Eu: Putaquepariu!
Lucy: Acontece, Fred.
Eu: Acontece no banheiro! Não era pra acontecer na praia, pô! Caralho, que nojo...e ai, vamos embora...?
Nisso, o pai de Lucy se metendo a escalar as rochas, a mãe de Lucy tranquilamente sentando numa cadeira e começando a reler seu livro e a própria Lucy tirando a roupa pra entrar na água, sob meu olhar horrorizado.
Eu: Lucy...Lucy, tem certeza? Pô, o menino acabou de dar uma barrigada na água, a bosta ainda deve estar boiando por aí e...
Lucy: Fred, o mar já tá cheio de merda mesmo. Deixa de frescura, pára de reclamar e entra na água.
E foi mergulhar.
Derrotado pela lógica cristalina da alemã, fiz a única coisa que me restava.
Respirei fundo, rezei um pai-nosso e entrei no mar cagado.


domingo, 28 de fevereiro de 2010

O direito à privacidade no transporte público (ou "vai sentar em outro lugar, cacete!")

 

Tá, é contraditório, eu sei. Privacidade no transporte público. Púbico, veja bem. Eu explico, sossega o bigode aí. Tudo bem, o ônibus (ou metrô, bonde, trem, barco, pau-de-arara ou seja lá o que o que você use pra te arrastar pra mais um dia de comida de rabo no seu emprego desgraçado) raramente vai estar vazio. Beleza. Era até estranho se estivesse. Aqui no Recife, eu nem subiria num ônibus vazio. Cilada na certa. Briga de gangue. Assombração. Ataque terrorista. Abdução. Ou a Torcida Jovem resolveu dar um passeio usando nosso belo sistema público de transporte, usando justamente esse ônibus que tu acabou de subir e, retardado como só tu pode ser, só agora percebeu a mundiça se juntando atrás de você. Doido, tu vai desejar que tivesse sido qualquer uma das opções anteriores, vai por mim. Mas eu divago. Sim. Privacidade.
Então, você deu sorte hoje. Pegou seu ônibus, nem cheio nem vazio, tem até lugar vago. Oba! Sendo recifense, você provavelmente faz como eu, procura uma poltrona única, dessas que não tem outra ligada à ela. Geralmente só tem uma desse tipo em cada veículo. Tá ocupada. Tu procura uma poltrona dupla mesmo, mas que esteja completamente vazia, se posiciona no assento do corredor, já pra inibir os inconvenientes que insistem em sentar ao seu lado. Tudo pra tentar alcançar um pouco de privacidade dentro do transporte público. Não, eu não gosto de gente estranha falando comigo no ônibus. Sou um ogro, foda-se. Mas e daí? Você também é, provavelmente. Ou então pertence ao outro grupo.
Esse é o grupo dos carentes, dos sedentos de atenção. Os caras que não tem ninguém com quem conversar, porque sabem que são uns anormais, aberrações psicológicas, seres repugnantes, verdadeiros invertebrados se arrastando como os vermes que são pela vida e pelas catracas dos ônibus. O sistema público de transporte está cheio deles. Podem estar disfarçados como uma velhinha aparentemente simpática, que quer “apenas” contar tudo o que aconteceu na vida dela desde a guerra da Criméia. Não se engane. As veias são as mais perigosas, especialmente dentro do ônibus. Vocês já sabem disso. E ao lado de quem essas criaturas adoram sentar? Não, advinha. Eu espero.
Do MEU lado, carai!
Já aconteceu comigo várias vezes. Estou eu, sentado na minha, num ônibus cheio de lugares vazios. Eu na poltrona do corredor, pernas cruzadas, MP3 ligado, olhos fechados e a poltrona ao meu lado torrando no sol. Parece convidativo? Tu faria algum esforço pra sentar ao meu lado? Não, né? Mas tem gente que faz.
Dia desses, sobe um veio no ônibus. Uma caralhada de lugar vazio. Lá vem o energúmeno, cambaleando pelo ônibus. Passa por uma poltrona vazia. Outra. Outra. Mais uma. A cabeça se movendo lentamente para os lados. Escaneando o ambiente. Eu me encolho no meu lugar. Tento me tornar invisível. Pra quê? Ele sente no ar minha angústia. A cabeça dele se fixa em um ponto. Eu. Se aproxima com um sorriso débil nos lábios encardidos de suor e baba. Ignora meus olhos fechados. Aponta para o assento ao meu lado. Ele quer sentar ao meu lado. Cheio de lugar vazio no ônibus e ele quer sentar ao meu lado. Me roubar os poucos instantes de privacidade, ensimesmamento que eu tenho. Caralho que vai. Me levanto de um salto. Arranco os fones do meu ouvido, a música se espalhando pelas poltronas e escorrendo pelo chão do ônibus. Boto o indicador na cara do desgraçado e berro e plenos pulmões “Porra! Tanto lugar vago e tu vem sentar justo do MEU lado? Eu não quero você perto de mim! Você não passa de um animal semi-racional, uma caricatura de gente! Um macaco que fala, mal consciente da própria insignificância e nada, NADA que você possa vomitar nos meus ouvidos vai ser remotamente interessante pra mim ou pra qualquer outra pessoa com que você vai cruzar pelo resto de sua existência patética, esse sofrimento coletivo que o homem, em seu cinismo, chama de vida! Se afaste de mim, agora. AGORA!”
O imbecil se afasta de mim. Chorando, os ombros tremendo. Se aninhando num canto, agarrando os próprios braços. Balança o corpo pra frente e pra trás, balbuciando consigo mesmo. Olho em volta, desafiando qualquer um a contestar minha visão do mundo. Ninguém ousa. Torno a me sentar, recolho a música espalhada pelo chão. Recoloco os fones de ouvido. Fecho os olhos. Minha privacidade é minha e ninguém me tira. Nem mesmo no ônibus. Muito menos no ônibus.
Mentira. Eu fiz o que todo mundo faz. Me levantei, deixei ele passar. Me sentei novamente. Fui racional. Fui gente. Coloquei os fones. Fechei os olhos. E sonhei que a sociedade não ditava meu comportamento.
Um dia.