quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Um quarto de vida, parte III






É fácil perder o foco nas pequenas coisas quando não existe ninguém cuidando de você. Banalidades tais como exercícios físicos regulares, higiene pessoal e uma alimentação minimamente sadia, por exemplo. E em um lugar onde a única cozinha é menor do que um guarda-roupa de uma porta, a geladeira é compartilhada entre nove pessoas e o fogão só serve de mesa para um fogareiro enferrujado de duas bocas, é preciso ser criativo na hora de comer. Uma opção é fazer as refeições fora de casa. O problema é que, além de ser uma alternativa bastante onerosa, é necessário ser tolerante com a qualidade dos alimentos servidos nas ruas do centro do Recife. Entre tapiocas de 50 centavos, acarajés baianos e pernambucanos, manuê, cocada, batata-frita, espetinho, cachorro-quente, churros, pipoca e aquela coisa sem nome que a tia da esquina vende, mas que de vez em quando foge correndo pela Avenida Boa Vista, a gente acaba consumindo um número alarmante de comidas suspeitas.

De maneira que é melhor se virar em casa mesmo. Pensei em uma dieta baseada inteiramente em Doritos e lavagens estomacais, mas a minha mãe me convenceu a comprar bananas. “Tem potássio”, garantiu ela, um tanto incerta quanto aos benefícios trazidos por esse nutriente em particular. Achei que uma palma duraria bastante tempo. O calor abafado do quarto, semelhante ao sovaco de um estivador do Cais de Santa Rita, se encarregou de amadurecer em pouco tempo uma dúzia de bananas verdes como o lodo que se acumula no quintal da pensão. Já no segundo dia elas adquiriram uma estranha cor amarronzada, com manchas negras se espalhando como um câncer vegetal. Malhadas, pareciam mais vaquinhas amarelas se amontoando no canto do balcão. Pareciam tremer levemente. No terceiro dia, as bananas começaram a se mover muito lentamente, rolando pelo chão em minha direção e emitindo pequenos suspiros arrastados sempre que eu entrava no quarto. Finalmente, no quarto dia, atingiram consciência própria. Hoje, eu só vou dormir depois de conversar com as minhas bananinhas falantes. Batizei cada uma com o nome de uma ex-namorada. Dona Mema, cujo quarto fica bem ao lado do meu, uma vez me perguntou com quem eu tanto conversava no celular. “Alguma paquera?”, perguntou ela com um sorriso banguela repuxando o rosto marcado. Expliquei a ela a minha relação com as bananas. Hoje, Dona Mema não responde mais o meu “bom-dia” de manhã cedo, mas em compensação também não pede mais para eu diminuir o volume do computador à noite.

A água potável também é uma preocupação constante. Dia desses pedi um garrafão pelo telefone e, confiando no tradicional atraso da entrega, fui tomar banho. No meio da chuveirada, escutei a voz incerta da senhoria, através da janela do banheiro, me avisando que o homem da água já havia chegado. Amaldiçoando a pontualidade dos entregadores do Centro, decidi interromper o banho para receber a mineral e pagar o homem. Foi então que eu percebi que havia esquecido a toalha. Do lado de fora, pendurada no pequeno quintal que separa meu quarto do resto da pensão. Soltei um rápido “Sossega o bigode que eu já tô indo!” pela janela e, como um ninja desprovido de equipamento, roupas e qualquer senso de moralidade, passei rapidamente do banheiro para o quarto, deixando um rastro de pegadas úmidas no corredor. O varal ficava bem perto da porta. Como eu havia pedido para o entregador me esperar, calculei que poderia sair, agarrar a toalha e voltar, com tempo suficiente para me enxugar e vestir uma roupa. Decidido, abri a porta, saí do quarto e estiquei a mão em direção ao varal, tudo em menos de um segundo. E foi nesse instante que escutei uma voz grave.

- Moço, é pra deixar a água aqui mesmo?

Lá estava o entregador, que havia decidido ser não apenas pontual, mas também prestativo, levando a água até a minha porta. Fiquei congelado onde eu estava, os pés plantados no cimento grosseiro do quintal, a mão estendida como uma garra apontada para a toalha, a bilola balançando suavemente ao sabor da brisa da Boa Vista. O pobre trabalhador me olhou com olhos tristes e experientes, de quem até já havia visto coisa pior no exercício diário da profissão, mas cujos anos ainda não haviam embrutecido seu espírito ao ponto de naturalizar o bizarro espetáculo que se desenrolava bem na sua frente. O homem, a agonia patente na voz, evitava contato visual com meus olhos, genitália e a minha presença nesse plano físico de maneira geral. Parecia se dirigir a uma telha meio solta no beiral da casa.

- Moço, olhe...se quiser, pode pagar depois, viu? Aliás, essa eu deixo por conta da casa, certo? Certo? Certo, né?

Depositou o garrafão no chão, girou sobre os calcanhares e, muito digno, despediu-se com um toque no boné da empresa. Saindo do transe de terror e vergonha, suspirei fundo, recolhi a encomenda e segui cabisbaixo para o quarto.

Teria que procurar o telefone de outra entrega de água mineral. De novo.


2 comentários:

  1. Um post deveras fálico. Bananas, bilola balançando ao vento, entregador de água recebendo outro tipo de pagamento...
    Sei não...

    Ass: Mauro, o galhofeiro.

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  2. AHAUAHAUHAUHUAH a bilola balançando suavemente ao sabor da brisa da Boa Vista.AUAUHAUHAUHA

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Vai, danado, reclama!