segunda-feira, 12 de julho de 2010

Figuras folclóricas: Leão





Se você já passou por qualquer rua, qualquer rua mesmo do Recife, já o viu. Não muito alto, magro, a pele esticada sobre os músculos. Vê-se que a tez, por debaixo da sujeira acumulada ao longo dos anos, é de uma brancura intensa. Algumas tatuagens azuladas pelo tempo, cujo significado está perdido até mesmo para seu dono. Possui cabelos loiros, duros de imundice e suor e o rosto emoldurado por uma barba mal cuidada e empretecida, que por vezes lhe chega até o peito. Os olhos, de um azul turmalino, são cercados por teias de rugas profundas. O nome verdadeiro ninguém sabe ao certo, mas atende pela alcunha de Leão. O que ele tem em comum com o animal que inspirou seu apelido é, talvez, a capacidade de sobrevivência. Não trabalha, mas também não pede esmola nem qualquer tipo de ajuda financeira. Deve dormir em algum lugar durante as noites quentes do Recife, embora ninguém saiba exatamente onde. E de onde tira o alimento que lhe sustenta o corpo castigado é um mistério.
Mas caminha.
E como caminha. Há décadas Leão vaga sem rumo pelas ruas da cidade, podendo ser encontrado em todos os lugares e em nenhum deles. Como uma espécie de entidade urbana, parece ser verdadeiramente onipresente, tudo vigiando e jamais interferindo. De quando em quando, visita as latas de lixo dos bairros chiques da cidade. Boa Viagem, Pina, Setúbal. Derby, Madalena, Espinheiro. Casa Forte, Apipucos e Jaqueira. Todos fazem parte do reinado do Leão recifense, quase sempre passeando semi-invisível por entre seus súditos, ignorando seu Rei e sendo por ele ignorados. Freqüentemente, cerca-se de objetos comuns, esquecidos ou abandonados por seus antigos donos. Nas mãos de Leão, tornam-se símbolos de um poder místico e inescrutável. E quando sua mente não consegue mais conter essa força ancestral, torna-se visível à plebe e passa a pregar seu conhecimento à todos os que se encontrarem nas imediações.
- Esse aqui é meu manto do poder, que protege meu corpo! – balbucia, agarrando entre os dedos febris um pedaço rasgado de estopa.
- Carrego comigo o cetro da luz e da sabedoria! – murmura, brandindo uma lanterna velha, sem lâmpada.
- Com minha lâmina sagrada, me defendo dos meus inimigos! – grita, apoiando-se precariamente em um cabo de vassoura quebrado.
- Em minha cabeça, levo a coroa da sabedoria! – choraminga ele, baixando a cabeça com tristeza e tocando com a ponta dos dedos encardidos um desbotado boné de propaganda eleitoral.
Mas então o momento de magia se desfaz como se jamais houvesse existido e Leão volta a se cobrir de sombras.
Nas mesas dos bares do Recife, os boêmios especulam sobre a origem de tal personagem, cada um dando sua versão da história e não existem duas iguais. Uns afirmam que Leão, com seus traços arianos, é o filho renegado de algum príncipe europeu, exilado ao Sul do Equador devido a um proverbial amor proibido. Outros juram que ele, na verdade, era um pobre rapaz, honesto e trabalhador, garçom de alguma das inúmeras churrascarias da cidade, cuja família havia sido, em sua totalidade, assassinada por algum motivo tão mesquinho que o próprio tempo, envergonhado, fez questão de esquecer. Não há consenso, a não ser pelo fato de que Leão era alguém que, por algum motivo, havia perdido tudo o que lhe era caro em algum momento de sua vida.
Não é difícil encontrá-lo. Dê uma caminhada pela cidade e, mais cedo ou mais tarde, ele vai surgir, como que formado dos próprios elementos que compõem a rua. Ouça com atenção e talvez você consiga, afinal, levantar o véu de mistério que cobre o passado de mais uma figura folclórica do Recife.

5 comentários:

  1. Fred,
    Adorei o texo. Cheguei e me emocionar. Não é mentira...você sabe que me emociono com certa facilidade. Sempre que via o cara, ficava triste.
    Leão sempre ocupou minha mente com alguma recorrência. Sempre quis saber a estória daquela pessoa. Como ele sobrevivia por aí sem pedir nada a ninguém.
    O sueito representa, ao menos pra mim, a solidão em seu extremo. O pior é saber que, como ele, há mais um monte de gente. Quase todo bairro tem o seu doido mendigo.
    Texto triste pra uma segunda-feira. Quero reclamar disso!

    Saulo Toscano

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  2. Saulinho, pois tu iria chorar uma cachoeira se tivesse visto uma cena que eu vi aqui perto do Santos Dumont. Um mendigo que não articulava uma frase e andava encurvado, parecendo um bicho, sendo enxotado por Lula, outra figura marginalizada de Boa Viagem. Parecia quando a gente diz "passa!" prum cachorro e ela sai meio rápido com o rabo entre as pernas. Assim mesmo, pô. A diferença é que no lugar do cão estava um ser humano. Kathá (minha noiva) ficou com os olhos cheios d'água.

    Ass: Mauro... só Mauro hoje.

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  3. Achei o texto lindo, sensível e sexy.
    Agora sim, pode se trancar no quarto com minha irmã para jogar war.
    Qualquer dia desses eu vou falar com ele, cortar o cabelo dele, fazer a barba, comprar roupas novas, fazer depilação e tu vai ver! Vai ficar um gato. Eu digo isso porque um dia eu já fui feio... Acreditem, eu já fui feio!

    Ass: Bizu, cantor da banda Golou o Ovo

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  4. Maurão,
    Nem me fala dessa cena, velho. Ô mundo cão do carai...
    Abração

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  5. diz a lenda q Leão jogava bola pra barai, dai um dia pegou sua mulher com outro na cama e endoidou.....
    Isso eh mais uma lenda do meu bairrinho de setubal

    ass Bruno Lua

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Vai, danado, reclama!