quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Corrupção X Criatividade


Estava na Zona Sul do Recife, saindo do bairro da Imbiribeira pela avenida de mesmo nome e subi o viaduto, quase em frente ao Aeroporto Internacional dos Guararapes, que leva à Boa Viagem. Aquela passagem suspensa havia sido construída recentemente, fato que ainda deixava alguns motoristas confusos quanto a qual via, exatamente, tomar. Ao fazer a curva, me deparei com duas passagens, separadas por alguns gelos baianos. Como era a primeira vez que passava por ali depois da construção do viaduto, peguei a faixa da esquerda, só percebendo tarde demais que aquela era exclusiva para ônibus. Como estava devagar e não havia outros carros, parei e retornei para o caminho da direita, destinado a carros de passeio. Ali, como que brotando do próprio asfalto, surgiu uma blitz do Departamento de Trânsito, o famigerado DETRAN, famoso em todo o território nacional pelo descaramento com que negocia multas pelas estradas do Brasil, geralmente com a colaboração dos motoristas, claro. 

O guarda viu minha manobra irregular e fez sinal para que eu parasse. Estacionei o veículo um pouco mais à frente e olhei pelo retrovisor para o policial que se aproximava. Trazia um sorriso ganancioso nos lábios, provavelmente já antecipando o suborno que esperava conseguir naquela ocasião. Acontece que sempre tive como ponto de honra jamais compactuar com qualquer tipo de corrupção, especialmente aquela ligada ao trânsito, uma das categorias que mais me tiravam do sério. Por outro lado, sempre fui um liso crônico e aquela multa ia pesar bastante nas minhas já magras finanças. Considerei a hipótese de argumentar com o policial, explicar que era a primeira vez que pegava aquele trajeto depois da reforma, afinal de contas erros acontecem, etc. Dei mais uma olhada pelo espelho do carro, avaliando a figura do homem que se aproximava. Era baixo e gordo, tinha pele morena e ostentava o obrigatório bigode que distingue, por algum motivo, a grande maioria dos policiais do país. Seu sorriso aumentava a cada passo e passava uma língua pequena e descorada entre o lábio inferior e os pelos protuberantes do superior, amarelados por um provável caso de tabagismo. Não me pareceu do tipo que se deixasse levar por um pedido de desculpas, ainda que honesto. 



Raciocinei furiosamente, tentando encontrar uma solução para o problema. Ao olhar mais uma vez pelo retrovisor, percebi que eu também não estava com a melhor das aparências: trazia a barba por fazer, um escuro par de olheiras de uma noite mal dormida, cabelos desgrenhados e um visível aspecto cansado, tudo isso empapado pelo suor causado pelo inclemente sol do Recife. Vendo a triste figura que eu fazia, uma ideia finalmente me surgiu e o seguinte diálogo teve lugar:

- Bom-dia, cidadão.

- Bom...bom-dia, seu guarda. – gaguejei, arrastando a minha voz e lançando um olhar semimorto para o policial.

- O senhor sabe por que eu lhe parei?

- Sei sim...entrei na faixa de ônibus, né? É que eu estava apressado, preciso chegar a um hospital. – continuei, afundando miseravelmente no banco do carro.

- Sei. O hospital, é? – o guarda hesitou, confuso.

- Isso seu guarda...não estou me sentindo bem. Acho que é grave. – insisti, fazendo minha melhor imitação de cadáver reanimado.



Tipo assim.
 
O guarda ficou mudo. Era provável que não tivesse sido treinado para aquela situação no curso de suborno oferecido pelos seus colegas mais experientes. Na falta de uma referência, resolveu se ater à fórmula.

- Veja bem...isso que o senhor fez foi muito grave... – provocou, balançando a cabeça pesarosamente.

- Eu sei, mas nesse estado que eu estou, não consigo nem pensar mais...acho que é o coração, sabe? – lamentei, deitando minha mão não tão sutilmente por sobre o peito.

O guarda olhou para mim, atentou para todos os meus sete fios de cabelo brancos e me voltou um olhar cheio de suspeita.

- Coração? Na sua idade?

- É genética. Meu pai morreu do coração. Meu avô morreu do coração. Tive até um cunhado que morreu do coração.

- Um cunhado?!

- É que a gente era muito próximo, seu guarda. – respondi, arregalando os olhos contra o sol e tentando forçar algumas lágrimas.

 O guarda olhou em volta, em busca de apoio. Seu superior observava à distância, certamente se perguntando o porquê da demora de uma negociação tão simples. Em casos como esse, as pequenas indiretas lançadas pelo policial gordo seriam suficientes para que o motorista entendesse o recado e contribuísse para a cervejinha do fim de semana dos oficiais. Talvez o superior pretendesse submeter o subalterno a algum tipo de teste. Ou simplesmente não quisesse sair da sombra onde se encontrava. Qualquer que fosse o motivo, dirigiu um olhar significativo para seu comandado e permaneceu onde estava, observando o movimento dos outros veículos.

- Olhe...veja bem. Isso que...isso que o senhor fez...dá uma multa alta, viu? Coisa grave!– reiniciou o guarda, traços de desespero já se tornando patentes em sua voz.

- Grave mesmo é o meu estado! Se eu não chegar em um hospital agora, eu...eu... – e comecei a me tremer, balançando pelo carro em uma mistura um tanto exagerada de epilepsia aguda somada a Mal de Parkinson crônico. 

O policial, boquiaberto, parecia não acreditar nos próprios olhos. 

- Moço! Moço, o senhor...o senhor precisa entender que...olhe, é uma multa pesada! É mais de duzentos reais, moço! – berrava o homem, transtornado.

- Eu não...eu...ggggg...não...não...nnnnn... – balbuciei, me sacudindo loucamente pelo carro. Por pura força de vontade, comecei a espumar pelos cantos da boca.

- Moço! Moço! – gritava o policial horrorizado, dividido entre a necessidade da propina que precisaria dividir com o superior e o desejo de se livrar daquele candidato a defunto que se debatia grotescamente na sua frente.

- Mas são duzentos reais, moço! – guinchou o oficial, quase aos prantos.

- Gaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhh!

- Tá bom, tá bom, porra! Vai, tá liberado! – concedeu o homem, enfim dando-se por vencido.

- Opa, valeu. – Me recompus com rapidez e saí tranquilamente, observando pelo retrovisor o oficial superior aproximando-se, com uma expressão de profundo desagrado, do policial gordo, que soluçava baixinho na calçada. Sorri para mim mesmo e segui em frente. Teria assoviado, se soubesse como.

Fred 1 X 0 Polícia corrupta.

5 comentários:

  1. Que coisa feia Frederico!

    Já eu prefiro aceitar meus erros e multas a ter que liberar qualquer quantia, inclusive, meus dotes de atriz, para estes elementos.

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  2. Pô, foda foi dizer que estava com a barba por fazer. Que barba?

    Ass: Mauro, o galhofeiro barbado.

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  3. Eu achava que tinha uma mãe nessa estória aí... E... Peraí! Agora que Mauro falou... Que barba?!?! Frederico, essa sua estória tá cheia de imprecisões... :-P

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Vai, danado, reclama!