quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Mainha


Passamos boa parte da nossa infância, meus irmãos e eu, soltos pelas ruas de barro e terrenos baldios do bairro do Janga, na cidade de Paulista, Região Metropolitana do Recife. Foi praticamente uma criação de interior, roubando caju e carambola do vizinho, jogando futebol, bola de gude, queimado, empinando pipa, brincando de esconder, de pega e todas as suas variações, como congelou, americano e macaco. E porque éramos razoavelmente trelosos, o resultado de muitos dias de diversão infantil era um só: pisa. Geralmente da minha mãe, que é quem passava mais tempo em casa e, é preciso que se diga, não tinha lá muita paciência com três meninos um tanto sem limites. Paraibana da cidade de Monteiro, chegou a ter um namorico com um dos maiores astros pop do estado, o sanfoneiro Flávio José.



Dizem que eu sou a cara dele.

Veio ao Recife estudar e tentar uma vida melhor. Acabou casada, morando no Janga e com três monstrinhos na barra de saia. Mamãe não era boa em fazer planos, como se pode perceber.

 Mas sabia disciplinar os filhos que era uma beleza. Apesar de achar que ao menos 37% (na última contagem) das surras que eu levei foram indevidas, eu não reclamo de nada. Acho impressionante como as crianças e adolescentes de hoje desrespeitam os pais, fazendo literalmente o que querem em casa. No meu tempo e dos meus irmãos, quando morávamos em uma grande casa de primeiro andar, bastava que mamãe mandasse que parássemos com a trela que congelávamos na mesma hora. A alternativa era bem pior, acreditem. Não sei se por preguiça ou por puro sadismo maternal, mas muitas vezes ela ordenava que marchássemos para o andar superior e fôssemos buscar o cinturão (do meu pai) que seria usado nas nossas bundas ossudas. A única vantagem era que podíamos escolher o mais macio e tirar logo a fivela, para machucar menos. Depois descíamos e, muito obedientes, entregávamos o cinto nas mãos de mamãe. E tome lapada. Não quero dar uma de religioso aqui, mas só conheço um sujeito que ia ali e voltava carregando o seu próprio instrumento de tortura, entregando-o serenamente aos seus algozes.


  
Vai, tira a fivela agora, safado!


Até hoje minha nádega direita é meio dormente, o que é um verdadeiro problema em shows e ônibus lotados. Me vestir pode ser uma agonia, se eu estiver distraído. Por instinto, arranco a parte metálica do cinturão e jogo pela janela. O vizinho já não sabe o que fazer com tanta fivela na varanda dele. 

Por sua criação no interior e também porque, francamente, às vezes testávamos a paciência dela, mamãe acabou desenvolvendo o hábito de distribuir respostas um tanto ríspidas demais para os filhos pequenos. Em muitas ocasiões, quando um de nós (ou todos ao mesmo tempo) voltávamos machucados da rua, aos prantos por um cortezinho insignificante na ponta do dedo, íamos mostrar o estrago para nossa mãe. Esta, invariavelmente, observava o ridículo machucado, fazia uma careta de profundo nojo e exclamava:

- Pronto! Vai sair as tripas por aí!

Era desesperador ouvir essa sentença mortal, antes de ficarmos velhos e espertos o suficiente para perceber que os nossos intestinos não iam escapar por aquele furinho na cabeça do dedo, que mal sangrava aquele sanguinho alaranjado dos meninos que não gostam de se alimentar direito. Tarefa de casa? Se bem-feita, muito bem. Se não, mostrávamos o resultado e ouvíamos algo do tipo:

- Está parecendo mais a tua venta! Faz tudo de novo, moleque!

Quando ameaçávamos uma trela de proporções mais épicas e dávamos o azar de ser pegos antes da conclusão do ato, mamãe, que é branca feito uma macaxeira descascada, adquiria tons rubros pelo rosto, apertava os punhos e ameaçava com a voz trêmula de raiva:

- Você não está manifestado, menino!

Ou o meu favorito, uma variação muito mais criativa da frase anterior:

- Você não está mordido do cachorro doido!

Se demorávamos a tomar o banho, ela diagnosticava, implacável:

- Estão cheirando a macaco morto a tapa! Já pro banheiro!

E se, mais velhos e mais ousados, ensaiávamos timidamente alguma resposta mais ousada, a réplica de mamãe era muito mais contundente do que as pisas que já não assustavam tanto:

- Repita o que você falou, seu cavalo batizado!

Eu, que jamais havia convivido com cães ensandecidos, cadáveres de macacos e pangarés cristãos, muitas vezes me perguntava que tipo de infância minha mãe havia tido em Monteiro. Mas a verdade é que, apesar de tudo, das surras e das respostas cortantes, a minha infância eu não troco por nada. Brinquei na rua, dei trabalho e fui uma criança feliz, com todas as cicatrizes para provar na minha canela fina. Hoje em dia mamãe já não dá mais essas respostas pitorescas, o que na verdade acho uma pena. Às vezes, quando faço algo errado e tenho consciência disso, quase consigo escutar o eco da voz da minha mãe, ralhando comigo do jeito que só ela sabia fazer. E quando isso acontece, eu paro e reflito melhor sobre o que estou fazendo antes de continuar.

Só para garantir.

5 comentários:

  1. Confesso que na minha estatística pessoal apenas uns 5% das surras que eu levava eram desnecessárias. Todos os outros 95% foram merecidos! Hahaha

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  2. Hehehe, também tenho ótimas recordações e cicatrizes.Minha mãe não me batia, mas me deixava de castigo ou então me olhava de um jeito que eu preferia que ela me batesse a lançar àquele olhar...:P

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  3. ahahahahahaha.. tua mãe namorou Flavio José! #MEDO! Mas, pior é a tia de Lucas que namorou Otto! Nem vou comentar a minha situação pq rir de se própria é lasca...

    :**

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  4. olha, digo logo que minha mãe, que tá aqui do meu lado, também tinha dessas frases, e para mim a do "vai sair as tripas" é a mais marcante =( eu me descabelava ao pensar numa morte tão trágica com o fiapo das tripas saindo pelas pontas dos dedos... e olha que eu só era uma viu? mas pelo menos vocês só tinham tia por perto, e eu que tinha mainha, a empregada, o porteiro, tia nuna, tio léo, tia sandra, tia corrinha... ahhh vá! se vocês tivessem esse batalhão por perto teriam sido pegos em 100% das trelas =D

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    (fala mainha)

    que Virgínia não era lá muito paciente eu sei, mas lembrem-se que ela saia correndo atrás de vocês com o prato de comida e uma colher pra ver se vocês comiam algo. Acho que só Thiaguinho não teve esse problema, era da turma de Alice e Dani... e sua vó dizia que não gostava quando vocês iam passar férias lá, pq ela ficava aperriada com vocês, já que não comiam nada! senão fosse por ela sua bunda seria mais ossuda e sua canela mais fina!

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  5. kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
    o bom é o esclarecimento dos comentários!
    Déa

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Vai, danado, reclama!