terça-feira, 30 de novembro de 2010

O país dos carros queimados




Isso que você aí em cima é um carro queimado. Não, não sou carioca, nem morador do Rio de Janeiro. A rua onde essa carcaça se encontrava até pouco tempo atrás é uma via tranquila do bairro residencial de Setúbal, zona sul do Recife, Pernambuco, Nordeste do Brasil, para os que sofrem de dislexia geográfica. Quando saí de casa de manhã cedo para trabalhar e dei de cara com esses destroços fumegantes, fiquei assustado. Não sabia o que havia acontecido, não tinha como descobrir naquele momento e, resignado, montei na minha bicicleta e segui para dar minhas aulas de inglês.

Quando voltei, à noite, ele continuava lá. Parecia ainda mais triste no escuro, a falta de luz enfatizando mais do que escondendo os destroços retorcidos, uma mancha de fuligem embaixo do veículo se misturando com a noite em volta. Imaginei as piores coisas. Talvez algum bandido houvesse promovido um assalto fazendo uso daquele carro, certamente roubado de alguma vítima infeliz, e ao final da ação o meliante teria decidido apagar com fogo a memória dos seus atos. Também era possível que fosse um crime passional, uma amante enlouquecida de ciúmes que, na falta do corpo do amado, havia se contentado em atear chamas ao seu veículo, pobre substituto de uma paixão obsessiva. A minha mente criava mil explicações para a presença daquele cadáver de metal e vidro, jazendo ali, bem na porta do meu prédio.

O mistério se resolveu rapidamente e era bem mais desinteressante do que os cenários hiperbólicos criados pela minha imaginação desenfreada. Uma vizinha havia tido um problema de aquecimento com o radiador, que entrou em combustão e reduziu o veículo ao estado no qual eu o havia encontrado de manhã cedo. Nada de marginais audaciosos ou paixões piromaníacas, portanto. Agora seria apenas uma questão de aguardar a retirada dos restos carbonizados e a rua voltaria à sua tranquilidade habitual.

Isso não aconteceu no dia seguinte. Nem no dia depois desse. Passou-se uma semana e o carro continuou lá. A cada manhã eu imaginava que sairia para trabalhar sem ter que olhar aquele entulho queimado na minha rua e sempre me frustrava. Imagino que os vizinhos também se horrorizavam com aquela paisagem e desejavam ter aquele traste removido o quanto antes. Mas ninguém fazia nada. Acometidos por aquele sentimento coletivo muito comum do “Deixa pra lá, não é problema meu”, as pessoas iam esperando que a proprietária do veículo resolvesse a situação e ninguém tomava uma atitude. Em poucas noites, a carcaça foi saqueada, mãos invisíveis levando tudo e qualquer coisa que pudesse ser vendida. O esqueleto de metal, agora com um aspecto ainda mais deprimente, se tornava um depósito de lixo para todos os que passavam por aquela via. Também se tornou ponto de referência, mas para aquele que querem evitar certos lugares estranhos ou suspeitos. “É depois daquela rua do carro queimado”, diziam as pessoas, “mas é melhor ir por outro lugar. Ali é meio esquisito.” A área foi ficando cada vez mais vazia, a coleta de lixo simplesmente não dava mais conta do acúmulo irregular e diário de detritos e agora o local começava a atrair a presença de pessoas que passavam as madrugadas junto aos restos de metal, os rostos sujos iluminados pela chama constante dos seus cachimbos de crack. A rua rapidamente se transformava em algo diferente, pior, as pessoas aceitando tudo de maneira bovina, apenas ocasionalmente balando as cabeças e sussurrando entre si “Meu Deus, que absurdo...e ninguém faz nada!”

Um dia, liguei para a prefeitura e expliquei o acontecido. Um guincho foi enviado na manhã seguinte e o carro queimado foi retirado sem maiores problemas. A coleta de lixo conseguiu remover as porcarias acumuladas por dias de complacência e uma chuva de verão lavou a horrível cicatriz de fuligem que marcava o asfalto. Os estranhos personagens noturnos, privados do seu habitat, deixaram de frequentar a rua, que passou a receber bicicletas, carros, pedestres, mães levando seus filhos para a escola, cães levando seus donos para passear. Vida, novamente. E tudo com uma simples ligação, que já poderia ter resolvido a situação há muito tempo, caso as pessoas conseguissem romper mais facilmente o gesso da conformidade coletiva. E eu me incluo entre elas.

É fácil botar a culpa no governo, no estado, pelas injustiças e contrariedades que enfrentamos todos os dias. Muito mais difícil é admitir que é a sociedade que legitima essa situação, quando assume uma atitude passiva perante aquilo que reconhece como errado. Se as coisas estão como estão, é simplesmente porque permitimos que assim fosse. Baixamos a cabeça, fingimos que não é conosco, pensamos que poderia ser pior. Assim, questões se tornam problemas, problemas se transformam em mazelas sociais e logo a situação assume o status de insolúvel. Como enxergar uma solução para um problema tão antigo que já foi incorporado ao cotidiano? Como podemos nos queixar da estrutura podre de uma casa, se as pessoas fingem que não enxergam os cupins a roer-lhe a base e varrem a serragem para debaixo do tapete? O mais grave mal social do Brasil é o conformismo coletivo, uma doença congênita e crônica, transformando cidadãos em cínicos, que apenas reclamam da atual conjuntura e nada fazem para melhorá-la. 

Ou  a sociedade muda, ou nos tornaremos o país dos carros queimados.

5 comentários:

  1. É, Fred. Isso é um mal coletivo.
    Já passei por muitas situações e ainda não consegui mudar realmente.Às vezes tento e faço alguma coisa, mas são poucas as vezes. Em outros casos, por comodismo como você bem explanou, eu deixo para lá e finjo não pertencer àquela atmosfera.
    Vou tentar refletir melhor com suas palavras.
    Elas serviram como um tapa na cara com a mão bem aberta.
    Ótimo texto!
    :*

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  2. lembrei da teoria da janela quebrada....

    o falecido blog: lanoquintal.blogspot.com

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  3. Que texto legal de ler!
    Concordo total contigo... e também vi o carro queimado na tua rua e fiquei criando mil histórias... ahahahah!

    :***

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  4. Ótima consideração, Fred (posso chamar de Fred?). É incrível como as pessoas adoram reclamar das coisas erradas e não fazem nada para mudar. É como reclamar do síndico do prédio e nunca se candidatar para o cargo. Ou reclamar da politicagem e votar em Tiririca. Ou reclamar da rua alagada e continuar jogando lixo no chão.

    Como no seu caso, que não custava nada ligar para mandarem recolher o carro, existe muita coisa que a gente pode fazer e não custa nada. Mas ninguém faz.

    Ah, galera, aí fica difícil.
    Beijos.

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  5. À vontade. Hahaha!

    Pessoalmente, não achei o final de Tropa de Elite 2 um final feliz. Ao contrário do primeiro, saí bastante desesperançosa do cinema. Ainda mais porque ia votar no outro dia. Comodismo foi no primeiro, que a gente via o BOPE funcionando e "fazendo a limpeza" pra gente poder viver em paz. O segundo foi mais um tapa na cara.

    Bjs!

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Vai, danado, reclama!