segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Vida de N3rd: a Lan House, parte final


Ele chamou atenção logo ao entrar na loja. Trazia os cabelos em caracóis despenteados, uma barba que não se decidia entre a maturidade ou a adolescência, um olhar que denotava uma estupidez quase bovina e vestia camisas verde-limão, laranja fluorescente ou qualquer outra cor ofensiva ao nervo ótico, desde que exibisse a propaganda de qualquer micareta realizada em alguma cidade esquecida por Deus. Aquele homem parecia ser o subproduto dos movimentos intestinais do próprio satanás depois de uma rodada de sarapatel em algum mercado público da cidade. Deixou sua Kombi, mantida inteira por uma combinação de Durepox e uma profunda fé no divino, no estacionamento em frente à Lan House, destacando-se dos demais veículos nem tanto por seu caráter de transporte coletivo, mas sim pela profusão de adesivos que declaravam, em letras garrafais e ortografia inaceitável, frases tais como “Não mim inveje, trabalhe” ou “Na subida paciênçia, na descida dá licenssa”. Ao entrar no recinto, fez várias cabeças se voltarem em sua direção, nenhuma delas atraídas por sua beleza, que de fato não existia. Ao menos não dentro do conceito atualmente válido de ser humano.



 Mas conceitos mudam.



Nas primeiras semanas, aparecia esporadicamente, mais observando do que utilizando algum serviço. Estudava as partidas travadas entre os meninos e parecia ensaiar mentalmente os movimentos praticados pelos garotos mais experientes. Começou a jogar aos poucos, uma meia hora de cada vez, surgindo entre um trabalho e outro. Logo já se tornaria conhecido dos funcionários e dos outros clientes, construindo sólidas amizades com o vigia da galeria e com o flanelinha da esquina. Aumentou a frequência de visitas até chegar um momento em que parecia jogar mais do que trabalhar, a Kombi servindo meramente como meio de transporte entre sua casa e a Lan House. Até que finalmente chegou o dia em que ele decidiu levar seu vício para o próximo nível de loucura.

Passou o dia alternando entre jogar e discutir com crianças que tinham um terço da idade dele, ocasionalmente relaxando com algumas sessões de MSN, nas quais conversava com pessoas de apelidos suspeitos, tais como Dengosa_Kom_Pinto ou 30cm_DiMorenici. Seguiu sentado na poltrona até o final do meu turno e não levantou mais, renovando suas horas sem parar e já acumulando um débito considerável. Passei o turno para o próximo funcionário, alertando para a criatura que parecia ter se fundido à poltrona e larguei do serviço. Na manhã seguinte, fui trabalhar como outro dia qualquer e constatei que, sim, o desgraçado continuava no mesmo lugar. Havia passado o dia anterior e a madrugada toda colado ao mesmo lugar, jogando sem parar. Chequei o programa que administrava os usuários e vi horrorizado a conta acumulada que logo entraria na casa dos dígitos triplos. Liguei para René explicando a situação e ele, ingênuo, estava certo de que o kombeiro pagaria tudo no final. Com a gerência autorizando aquele show de horrores, fiz as pazes com meu Deus e fui trabalhar.

Passou-se um dia. Outro. E depois mais outro. Ele apenas se levantava da poltrona para realizar coisas inomináveis no sanitário e se encher das porcarias vendidas para alimentar os clientes mais corajosos. Engordava como um porco em época de abate, transpirando um suor amarelo que pingava pelo assoalho, acumulando-se nos braços da cadeira, que já exibia sinais de corrosão avançada. Crescia a olhos vistos, como um tumor maligno alimentado por doses maciças de raios-X e fast-food. Aquele ser grotesco já estava começando a se tornar uma atração turística local, atraindo pessoas que compareciam apenas para ver aquela aberração de perto. Os funcionários apostavam entre si em qual turno o corpo dele finalmente iria se render e buscar o doce alívio da morte. Eu rezava para que não fosse no meu.



 Não posso morrer agora, ainda tenho muito o que realizar!



Depois de uma semana dessa existência não natural, René finalmente juntou coragem para se aproximar da besta-fera criada por nós mesmos e propor um desconto em sua já extensa milhagem de computador, desde que ele quitasse sua dívida imediatamente. O monstro ruminou a ideia por alguns momentos e prontificou-se a pagar. Tinha apenas que ir buscar seu dinheiro em casa, onde havia esquecido sua carteira, provavelmente ao lado de sua humanidade. Para meu espanto, meu gerente e amigo aceitou a proposta e todos observamos assombrados a coisa erguer-se da poltrona, encerrando uma semana de imunda simbiose, e partir em sua Kombi caindo aos pedaços. A cadeira, que depois dessa provação apresentava uma silhueta de suor de formato vagamente humano em seu estofamento, já não podia mais ser utilizada devido ao terrível odor impregnado nela, misturando o cheiro de axilas rançosas, pedaços decompostos de salsichas empanadas e uma semana de peidos praticamente ininterruptos. Foi confiscada pela Saúde Pública para ser incinerada ou doada para alguma faculdade de Biologia, já não lembro mais.

Quando questionei René sobre a decisão de deixar o cara ir embora quando o mesmo, obviamente, não tinha a menor intenção de voltar e saldar sua dívida, meu amigo deu um longo trago em seu cigarro, com os olhos perdidos no horizonte de arranha-céus de Boa Viagem e sentenciou:

- Fred, ruim mesmo era se ele continuasse aqui. Antes uma semana de débitos perdida do que aquele encosto por aqui mais tempo.

Reconheci a sabedoria contida naquelas palavras e me consolei com o pensamento de que, algumas vezes, vencer não é uma opção. Nunca mais vimos o kombeiro e esse fato trouxe alegria e esperança aos nossos corações. O futuro, agora, parecia mais promissor e nos permitíamos até fazer planos, livres daquela presença horrenda em nosso ambiente de trabalho.

A Lan House faliu pouco tempo depois desse episódio.

2 comentários:

  1. kkkkkkkkkkkkk
    Que horror, cada detalhe que você contou sobre essa criatura me fez ter náuseas múltiplas aqui!
    Bem legal o texto, você e suas estórias!
    :**

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  2. Cara, você é hiperbólico kkkkkkkkkkkkkkkk
    suas historias são bem legais,mas são reais? haha
    ;*

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Vai, danado, reclama!