segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Detesto ônibus, parte I: despida de sanidade





Detesto ônibus e o sentimento é mútuo. Ciente dessa volátil relação kármica entre mim e meu transporte diário, o universo costuma testar a minha paciência me colocando em situações que jamais deveriam acontecer fora de um filme de David Lynch. Essa semana mesmo eu peguei o coletivo, como faço todos os dias de minha desgraçada vida de pedestre. Me posicionei no solitário assento imediatamente atrás da jaula de vidro que segrega idosos, gestantes e outras minorias do resto do ônibus, mas que garante que essas pessoas sigam seu caminho sentadas e fora da habitual zona de assalto do veículo. Na minha frente, de costas para mim e isolada por uma divisória de vidro, acomodou-se uma senhora de cabelos brancos e olhar distante. Assim que sentou, começou a remexer alguma coisa dentro de sua enorme e desproporcional bolsa. Finalmente encontrando o que queria, ela abriu a janela e, quando o ônibus se deteve na parada, jogou o objeto pela janela. Horrorizado de ver uma idosa arremessando lixo pela janela do coletivo, voltei meu olhar para o item descartado, para saber a que me referir na hora de passar uma descompostura na velha mal-educada. Meus olhos se fixaram em um molambo caído pateticamente na lateral do veículo, próximo ao pneu. O que eu vi vai me acompanhar pelo resto da minha vida.

Era um sutiã.

Ele era velho, grande e inescapavelmente bege. Aquela senhora de aparência serena havia acabado de atirar seu sutiã pela janela do coletivo, quase acertando o para-brisa do carro que tentava ultrapassar o ônibus. Com o cérebro impactado pelo absurdo da situação, fiquei em dúvida se ela havia pescado a peça de sua bolsa ou se havia removido a que ela estava usando naquela hora.



Tipo assim. Só que com uma octogenária. Em um ônibus sacolejante.


Ao lado dela, um senhor trêmulo observava atentamente, talvez excitado com a perspectiva de um strip-tease ao vivo e gratuito, sem dúvida o primeiro depois de muitas décadas de secura geriátrica. Ao atentar para essa possibilidade, minha mão automaticamente agarrou a barra de emergência da janela. Tentando manter a calma, contemporizei que a desapegada senhora ainda não havia, ao menos, jogado fora sua calcinha. Agradeci a Deus pelos pequenos milagres do cotidiano e passei a observar a velha com atenção e uma certa medida de temor, protegido pela barreira de vidro e metal que, eu agora percebia, servia para separar o resto do ônibus daquela área em particular, não o contrário. De repente, a velha jogou mais uma peça de roupa pela janela. E mais outra. Outra. A intervalos regulares, a idosa ia jogando o conteúdo da sua bolsa pela Av. Conselheiro Aguiar, enquanto motoristas atônitos tentavam desviar daquela chuva de brechó. Me perguntei o motivo daquela insanidade. Talvez fosse uma maneira altamente informal de doar suas roupas para as moradoras de rua do Recife que já estivessem na melhor idade. Uma espécie de drive-thru filantrópico. Ou quem sabe ela estivesse criando um caminho de roupas, como as migalhas de João e Maria ou o fio de Teseu, ciente de que o Alzheimer não permitiria que ela lembrasse o caminho de volta para casa. Certamente subiria em um ônibus aleatório quando desejasse retornar e gritaria, triunfante, para o motorista confuso: “Siga aquela calçola! Depois aquela meia! E...bem...aquela cueca também!”.

Imaginei minha avó possuída por uma vontade semelhante à daquela pobre mulher, ensandecidamente jogando suas roupas pela janela do ônibus e viajando pelada, os trancos e solavancos do veículo criando um espetáculo de horror indizível. Apenas o mais básico dos instintos de autopreservação me impediu de encerrar minha atormentada existência esmagando minha cabeça na catraca do ônibus. Ao meu redor, talvez por puro constrangimento, as pessoas pareciam nada perceber, concentradas em pontos invisíveis da geografia urbana recifense enquanto, bem nas suas vistas, uma senhora de idade avançada descarregava o conteúdo do seu guarda-roupa pelas ruas da cidade. A absoluta falta de reação dos passageiros, com exceção do velhinho pervertido, apenas deixava o tom de pesadelo kafkiano da coisa toda ainda mais pronunciado. Seria louca? Ela era, ao menos, lúcida o suficiente para distinguir a parte de não pagantes do resto do ônibus, fazendo valer seu direito de idosa ao mesmo tempo em que abusava da complacência social adquirida com a idade. O mais provável é que ela simplesmente não se importasse mais com a opinião alheia e sentisse que, se as lixeiras da cidade não corriam emparelhadas aos ônibus para receber suas roupas descartadas, então a prefeitura é que devia tomar algum tipo de providência, não ela. Procurei me imaginar ao chegar naquela mesma idade, cerca de 50 anos no futuro, talvez atirando minha coleção de DVDs pela janela de um trem flutuante, enquanto as pessoas lá embaixo eram bombardeadas por anacrônicas amostras de cinema em apenas duas dimensões. Perturbado por aqueles pensamentos, pedi parada e desci, enquanto a despirocada senhora engatava uma animada conversa com o cartaz a sua frente. Saquei meu celular e liguei para a minha avó.

Pedi sua benção e também que ela nunca, jamais, sob hipótese alguma andasse de ônibus no Recife.



2 comentários:

Vai, danado, reclama!