domingo, 28 de fevereiro de 2010

O direito à privacidade no transporte público (ou "vai sentar em outro lugar, cacete!")

 

Tá, é contraditório, eu sei. Privacidade no transporte público. Púbico, veja bem. Eu explico, sossega o bigode aí. Tudo bem, o ônibus (ou metrô, bonde, trem, barco, pau-de-arara ou seja lá o que o que você use pra te arrastar pra mais um dia de comida de rabo no seu emprego desgraçado) raramente vai estar vazio. Beleza. Era até estranho se estivesse. Aqui no Recife, eu nem subiria num ônibus vazio. Cilada na certa. Briga de gangue. Assombração. Ataque terrorista. Abdução. Ou a Torcida Jovem resolveu dar um passeio usando nosso belo sistema público de transporte, usando justamente esse ônibus que tu acabou de subir e, retardado como só tu pode ser, só agora percebeu a mundiça se juntando atrás de você. Doido, tu vai desejar que tivesse sido qualquer uma das opções anteriores, vai por mim. Mas eu divago. Sim. Privacidade.
Então, você deu sorte hoje. Pegou seu ônibus, nem cheio nem vazio, tem até lugar vago. Oba! Sendo recifense, você provavelmente faz como eu, procura uma poltrona única, dessas que não tem outra ligada à ela. Geralmente só tem uma desse tipo em cada veículo. Tá ocupada. Tu procura uma poltrona dupla mesmo, mas que esteja completamente vazia, se posiciona no assento do corredor, já pra inibir os inconvenientes que insistem em sentar ao seu lado. Tudo pra tentar alcançar um pouco de privacidade dentro do transporte público. Não, eu não gosto de gente estranha falando comigo no ônibus. Sou um ogro, foda-se. Mas e daí? Você também é, provavelmente. Ou então pertence ao outro grupo.
Esse é o grupo dos carentes, dos sedentos de atenção. Os caras que não tem ninguém com quem conversar, porque sabem que são uns anormais, aberrações psicológicas, seres repugnantes, verdadeiros invertebrados se arrastando como os vermes que são pela vida e pelas catracas dos ônibus. O sistema público de transporte está cheio deles. Podem estar disfarçados como uma velhinha aparentemente simpática, que quer “apenas” contar tudo o que aconteceu na vida dela desde a guerra da Criméia. Não se engane. As veias são as mais perigosas, especialmente dentro do ônibus. Vocês já sabem disso. E ao lado de quem essas criaturas adoram sentar? Não, advinha. Eu espero.
Do MEU lado, carai!
Já aconteceu comigo várias vezes. Estou eu, sentado na minha, num ônibus cheio de lugares vazios. Eu na poltrona do corredor, pernas cruzadas, MP3 ligado, olhos fechados e a poltrona ao meu lado torrando no sol. Parece convidativo? Tu faria algum esforço pra sentar ao meu lado? Não, né? Mas tem gente que faz.
Dia desses, sobe um veio no ônibus. Uma caralhada de lugar vazio. Lá vem o energúmeno, cambaleando pelo ônibus. Passa por uma poltrona vazia. Outra. Outra. Mais uma. A cabeça se movendo lentamente para os lados. Escaneando o ambiente. Eu me encolho no meu lugar. Tento me tornar invisível. Pra quê? Ele sente no ar minha angústia. A cabeça dele se fixa em um ponto. Eu. Se aproxima com um sorriso débil nos lábios encardidos de suor e baba. Ignora meus olhos fechados. Aponta para o assento ao meu lado. Ele quer sentar ao meu lado. Cheio de lugar vazio no ônibus e ele quer sentar ao meu lado. Me roubar os poucos instantes de privacidade, ensimesmamento que eu tenho. Caralho que vai. Me levanto de um salto. Arranco os fones do meu ouvido, a música se espalhando pelas poltronas e escorrendo pelo chão do ônibus. Boto o indicador na cara do desgraçado e berro e plenos pulmões “Porra! Tanto lugar vago e tu vem sentar justo do MEU lado? Eu não quero você perto de mim! Você não passa de um animal semi-racional, uma caricatura de gente! Um macaco que fala, mal consciente da própria insignificância e nada, NADA que você possa vomitar nos meus ouvidos vai ser remotamente interessante pra mim ou pra qualquer outra pessoa com que você vai cruzar pelo resto de sua existência patética, esse sofrimento coletivo que o homem, em seu cinismo, chama de vida! Se afaste de mim, agora. AGORA!”
O imbecil se afasta de mim. Chorando, os ombros tremendo. Se aninhando num canto, agarrando os próprios braços. Balança o corpo pra frente e pra trás, balbuciando consigo mesmo. Olho em volta, desafiando qualquer um a contestar minha visão do mundo. Ninguém ousa. Torno a me sentar, recolho a música espalhada pelo chão. Recoloco os fones de ouvido. Fecho os olhos. Minha privacidade é minha e ninguém me tira. Nem mesmo no ônibus. Muito menos no ônibus.
Mentira. Eu fiz o que todo mundo faz. Me levantei, deixei ele passar. Me sentei novamente. Fui racional. Fui gente. Coloquei os fones. Fechei os olhos. E sonhei que a sociedade não ditava meu comportamento.
Um dia.


Um comentário:

  1. E não te obrigou a falar contigo, como é o fim da historia, eh?! Quero saber de tudo, toda a conversa!! :D

    huahuahuahuahua :P
    Tu atrae esse povo, eu sei..
    Mas.. também conheço essas situações.. até aqui..
    Não vai imaginar quanta gente há que obviamente não tem NINGUÉM nesse mundo inteiro com quem falar!!
    E.. com preferência juntam-se na metrô .. e nem precisam sentar ao seu lado pra tu puder aproveitar do ato inteiro. Eles começam a falar (e gritar ou as vezes jogar coisas) com o vagão completo em voz alta.. se achar outro lugar, os vizinhos tentam a fugir se é um desses indivíduos, tipo mais agressivos.

    Eu só ando no transporte público com fones do MP3, geralmente ligado, hehe, mas as vezes nem isso ajuda a evitar uma conversa chata que ninguém quer.. ah.. mentira.. que uma pessoa queria sim, mas eu não.. Com certeza tu sabe do que to falando..
    Graças a Deus o aspeito do calor e suor cumulado e juntado de pessoas que fiquem mais perto do que seria necesário não interessa tanto.. :) pelo menos na metrõ que quase sempre fica fresquinha.


    (Me acreditem que também pode ter um calor do cacete aqui em verão. E na bonde, por exemplo, da pra ter as mesmas experências agradáveis como essa de Fred que ele descreveu naquele texto sobre o calor :D)

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Vai, danado, reclama!