domingo, 27 de junho de 2010

É tudo pelo salário III





Com atenção, o professor de inglês escaneou com os olhos as crianças à sua frente, logo voltando sua atenção para um menininho gordo, de movimentos vacilantes e olhar assustadiço. “O elo mais fraco da corrente”, pensou, de maneira predatória. Aproximou-se do garoto, o sorriso petrificado na face e os apetrechos de coelhinho da Páscoa nas mãos. O garoto teve um sobressalto, mas logo fixou o olhar nas longas orelhas de cartolina. Movendo-se de forma deliberada, o professor estendeu os acessórios para a criança, que prontamente abriu os braços, ansiosa, para recebê-los. Um sorriso de satisfação infantil espalhava-se pelas bochechas largas e rosadas.
Quando o garoto estava quase tocando as tão almejadas orelhas, o professor subitamente retraiu seu braço. O menino estacou, confuso. O sorriso morreu em seu rosto, dando lugar a um olhar de desespero que logo se transformaria em choro. Começou a fungar. Rapidamente, o professor falou, sorrindo maldosamente “Bunny?”. O menino hesitou por um momento e respondeu “Coelhinho”. O professor recolheu ainda mais a sua mão. “Bunny?”, insistiu, implacável. Ao redor deles, as crianças assistiam aquele embate, mesmerizadas. O menininho gordo parecia não saber o que fazer. Olhou ao seu redor e fixou-se na expressão zangada da pequena líder. Seus olhos passaram da menina para a fantasia de coelhinho nas mãos do professor, cujo sorriso, àquela altura, era muito mais o resultado de cãibra muscular do que qualquer outra coisa. O garoto, enfim, estremeceu, estendeu as mãos gorduchas para o instrutor e balbuciou num fio de voz “Bunny”. Magnânimo, o professor entregou os acessórios de coelhinho. Logo as outras crianças estenderam seus bracinhos e começaram a articular, sem parar “Bunny, bunny, bunny, tio!” Foi com um misto de satisfação profissional e prazer selvagem que o professor de inglês viu a expressão de desapontamento nos enormes olhos da pequena líder. Era a única que ainda não havia falado “Bunny”. Pois bem, também seria a única entre as crianças a não se vestir de Coelhinho da Páscoa.
Com uma paciência incomum, o professor foi ajudando as crianças com suas fantasias. Punha no colo, colocava o diadema de orelhas, pintava o narizinho de coelho e fixava o rabo felpudo. Até mesmo permitiu que as crianças usassem o kit restante, que seria da jovem líder, para transformá-lo em um enorme e deslocado coelho adulto. Enquanto isso, percebia que a pequena líder discretamente se acercava de alguns dos seus colegas, apenas por alguns segundos. Certamente, tentando fazer com que desistissem de suas amadas fantasias. Sem sucesso, o educador percebeu maliciosamente, uma vez que as crianças pareciam cada vez mais empolgadas com a brincadeira. Finalmente, haviam na sala de aula 16 coelhinhos, 1 coelho gigante e bastante desengonçado e uma menininha de queixo altivo e olhar resignado. Extasiado, o professor não se conteve e, olhando diretamente para sua oponente derrotada, começou a tripudiar de suas tentativas infrutíferas de desestabilizá-lo emocional e profissionalmente. Virou-se para as crianças, apontou para suas orelhas e perguntou “Orelhinha de quê?”
Bunny”, responderam as crianças, em uníssono.
“Narizinho de quê?”
Bunny”, gritaram os alunos, totalmente a sua mercê.
“Rabinho de quê?”
BUNNY”, berraram meninos e meninas, extasiados.
O professor de inglês encarou seus pequenos pupilos, um de cada vez. Fixou o olhar na pequena líder, que exibia uma expressão estranhamente calma no rosto, o único ali que não possuía as características de um roedor. A menina sustentou seu olhar com dignidade, resoluta. O professor então apontou para si próprio, alteando a voz e sentindo o gosto doce da vitória em sua boca ressecada.
“E eu, sou o quê?”
As crianças, como uma entidade única, um organismo formado por várias e pequenas células trabalhando em conjunto com seus próprios e misteriosos desígnios, ergueram suas vozes agudas respondendo.
“COELHINHO, TIO!”
O professor de inglês sentiu um frio perverso nascendo da boca do seu estômago. Espalhava-se por seus membros com uma velocidade assustadora, impedindo-o de se mover, de falar, de raciocinar com clareza. Começou a tremer incontrolavelmente ao mesmo tempo em que sentia lágrimas quentes contrastando com o gelo de suas faces. Olhou ao redor, apoplético, buscando compreender o que havia se passado. Foi então que viu a pequena líder, um sorriso macabro e banguela se espalhando por seu rostinho corado. Apontou para o instrutor e exclamou, cruelmente “Coelhinho!”. Logo, todas as crianças começaram a imitá-la, bracinhos estendidos na direção do trêmulo educador, escarnecendo com suas vozes infantis “COELHINHO!”.
O professor gritou, mas nenhum som escapava de sua boca. Desabou pesadamente no chão da sala de aula, os olhos arregalados procurando por algo que não estava lá. O frio que se espalhava pelo seu corpo finalmente alcançou o coração. Sua vista escureceu e a última coisa que enxergou foi a pequena líder, um expressão de triunfo em seus olhos estranhamente adultos. Lentamente, estendia a mãozinha para pegar as orelhas de coelho que eram suas por direito. Fechou os olhos pela última vez.
Quando percebeu que as crianças não haviam sido liberadas após o toque, a coordenadora foi até a sala de aula. Ao abrir a porta descobriu, horrorizada, 17 coelhinhos da Páscoa brincando placidamente ao redor do professor, seu corpo convulsionado em um último espasmo de horror. Estava morto. Transtornada, a coordenadora balbuciou, para ninguém em particular “Minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, o que é isso?”.
Bunny”, respondeu, com um sorriso inocente, a pequena líder. E continuou brincando tranquilamente com seus amiguinhos.


Esse texto foi uma homenagem a todos os professores, instrutores e educadores em geral e, em especial, ao meu amigo Pablo Vilella. Pois é. Professor sofre.

3 comentários:

  1. Ufa! Até que enfim! Mas valeu a espera. Agora, senti um tom de desabafo aí, não?

    Ass: Mauro, o rei da galhofa.

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  2. Isso é quase um conto de terror. Quase?

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  3. Conto de terror ou não, eu quase senti as mãos do meu tio de inglês a me enforcar. Afinal, paciência tem limite! kkkkkkkkkkkkk

    Tô brincando! Ele só me fuzilou no olhar. Né tio?! kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

    Realmente: Professor sofre!

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Vai, danado, reclama!