terça-feira, 1 de junho de 2010

Não dormirás




Sábado, 08:00 horas da manhã. Um dia e horário criados por Deus para que os seres humanos descansem de suas atribuições diárias, dormindo mais um pouco e, mais tarde, encontrando os amigos e família para relaxar. Um pensamento que me transmite paz, firmemente enraizado no meu subconsciente.
Até ser brutalmente arrancado, como uma erva daninha, por um som profano vindo da rua:
- Olha o gás! Apenas 30 reais! OLHA O GÁS!
Transtornado, me levanto e vou até a janela, a tempo de ver o caminhão se afastando pela rua, os alto-falantes berrando suas promessas de gás de cozinha barato. Apenas 30 reais. Respiro profundamente, olho para o meu colchão, minha silhueta eternamente marcada pelo suor em sua superfície, depois de noites e mais noites mal dormidas de Verão. Volto para a cama e tento recuperar o sono perdido e prometido pelo Senhor.
Mas eis que um grito medonho parte da rua e invade meus ouvidos, atingindo em cheio meu cérebro cansado.
- Macaxeira! Macaxeira! MACAXEIRA!
Dessa vez eu pulo da cama e corro para a janela. Minha respiração pesada forma pequenas bolhas na saliva que escorre pelo canto da minha boca retorcida de ódio. Consigo suprimir o instinto de gritar ensandecidamente e, em silêncio, imagino todas as formas não-cristãs através das quais eu poderia forçar uma interação não-natural entre o vendedor e sua macaxeira. Aos poucos me acalmo. Minha visão, escurecida pela raiva e pelo princípio de infarto, lentamente começa a clarear. Volto para a cama, me deito e fecho os olhos. Como um mantra, repito baixinho para mim mesmo que, afinal de contas, era sábado, o dia do descanso escolhido por Deus. Ele não me deixaria na mão daquele jeito. Mais calmo, senti que meu corpo mergulhava lentamente no sono tão almejado.
Até que o Criador, em sua cólera divina, senso de ironia e, provavelmente, falta do que fazer, me faz escutar mais um grito bisonho, um estupro auditivo tornado ainda mais revoltante pelo conteúdo do que estava sendo berrado.
- Hoje tem missa no Templo da Salvação! Ao lado da Borracharia do seu Zezinho Catinguelê! Templo da Salvação! TRAZENDO PAZ PARA A SUA VIDA!
Sinto o ódio sendo bombeado pelas minhas veias, no ritmo do meu coração enlouquecido. Salto da cama, deixo o apartamento e desço correndo as escadas, sem ao menos me vestir. Abro a porta da rua, tomado por intenções assassinas e idéias horrendas, porém criativas. Sou saudado pela visão do apocalipse. Como em uma convenção do inferno, todos os vendedores ambulantes da cidade e propagandistas de bairro se encontram aglomerados em frente ao meu prédio, competindo entre si aos berros, anunciando seus produtos a plenos pulmões. Vende-se não apenas água mineral, DVDs piratas e cavaquinho. Também se comercializa a perdição do corpo e a salvação da alma, o fim de todos os seus problemas e o início de muitos outros.
Minha visão escurece mais uma vez, as pernas fraquejam e sinto lágrimas quentes escorrendo pelas minhas faces marcadas pelo desespero. De joelhos, sou cercado pela multidão de condenados, que gritam cada vez mais alto, se aproximando de mim, produtos nas mãos e olhos vazios, desprovidos de alma. Meu cérebro desiste, se fecha. Morre.
No alto, Deus sorri.

7 comentários:

  1. É bem isso mesmo!hehe...aqui na minha rua passa um cedinho..."É O PAULIXTA!!!". :*****

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  2. Senhor, olhai piedosamente para nós. Enviai Tua cólera para esses hereges, infiéis que não nos deixam descansar nos dias que Tu determinaste como de descanso. Fazei com que seus órgãos sexuais apodreçam, seus orifícios onde o sol (que Tu criaste com maestria e sabedoria, apesar de fazer um calor filho da puta) não bate sejam invadidos por trolhas colossais. Amém.

    Ass: Mauro, o que vai pro culto orar (ou pro cu torar).

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  3. Isso porque vocês não tem na porta vendedor de pano de prato, de doce japonês, de cuscuz, de pamonha, milho cozido e tapioca (esse é um patrimônio da gastronomia de rua), algodão doce, pipoca, consertador de panelas furada (se seu fundo tem buraco, a gente tapa), de esterco (isso, cocô de vaca, adubo do bom), comprador de ferro-velho (tô vendo você aí! aparece ferro-velho!), kombi das frutas e verduras, vendedor de caqueiras (pra botar as plantas com o esterco do outro), limpador de mato, uma menina que fica lhe chamando pra vender rifa pra ela ir pro mirabilândia (há três anos ela vende a mesma rifa), uma viciada em crack que diz que a filha foi picada por um escorpião (quando você diz que chamar o SAMU, ela corre), falsos garis da prefeitura, que pedem dinheiro uniformizados e pra fechar, um lava-jato onde os nobres trabalhadores ligam o som dos carros da clientela pra ouvir nas alturas os hits do momento (vaaai, ele vai matar você, vaaai, ele vai matar você....). Vocês são abençoados e não sabem.

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  4. Ainda bem que não tinha nenhuma "cigana" na sua porta. Por que está, não te larga nem por um decreto, Aliás, só por uma graninha. Se você não der, pode ter certeza, mais na frente você sentirá a falta da sua carteira.

    Não esquecendo que a mesma profanará o resto dos teus dias.

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  5. Tá bom, eu vou ganhar agora, além de tudo isso que falaram, na minha pequena rua que deve ter uns 30m, tem uma construção e os doentes mentais inventaram de trabalhar aos sábados às 5h30 da manhã!!! Sim sim, eu escrevi certo e vc está lendo certo, às 5h30 da manhã tem um imbecil batendo com uma chave de fenda ou ferramenta metálica parecida, numa caixa enorme com formato de megafone!
    Por que essa caixa existe? Pra rodar o cimento. E porque o estúpido tá batendo às 5h30 da manhã? Supostamente para desgrudar o cimento que fica colado...
    Mas eu não acredito em nada disso...pra mim é só vingança mesmo....

    Evinha

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Vai, danado, reclama!