segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Vida de estagiário: o abatedouro clandestino, parte I




A supervisora do primeiro setor da Vigilância Sanitária entrou de supetão na sala onde se reuniam os inspetores e declarou, esbaforida:

- Gente! Denúncia de emergência! Quero vocês prontos pra sair em dois minutos!

- O que foi que aconteceu chefa? Denúncia de quê? E onde? – questionou um dos inspetores.

- Abatedouro clandestino. Lá no Coque. – acrescentou ela à meia-voz. Os colegas que não haviam sido selecionados para a missão suspiraram de alívio. Virei para meu tutor, que exibia uma expressão preocupada e indaguei, sem muitos rodeios:

- Caralho, no Coque?

- Se fudemos. – declarou meu companheiro, placidamente.

- Não foi lá que teve um tiroteio esses dias? – comentou um dos técnicos. Logo, todos começaram a relembrar casos escabrosos ocorridos na região. 

- Esses dias não. Todo dia. Minha empregada mora lá perto e falou que acorda e vai dormir com o pipoco de bala.

- Ontem mesmo mataram um. Meteram tanta bala no barraco que até o gato morreu. O gato, doido. Fuleiragem...

- Meu cunhado é tenente da Choque. Aquele que é acostumado a separar os cacetes que rolam entre a Torcida Jovem e a Inferno Coral. Pois ele disse que no dia que mandarem ele entrar no Coque, pede exoneração da corporação.

- Semana passada um tarado, aquele lá do mangue, resolveu se esconder por lá. Pois pegaram o homem e deram fim nele ali mesmo. Dizem que primeiro deram uma pisa no desgraçado, daí arrancaram as unhas com alicate e depois cortaram a bilola e socaram no...

- Chega! Quero vocês na Kombi, já! E não se preocupem, que vocês vão receber escolta. Uma viatura da polícia vai acompanhar a Vigilância. – acrescentou a supervisora, sem muita convicção.

Nos levantamos, recolhemos nosso material dos armários e seguimos para o pátio. No caminho, virei-me para meu colega e dei voz as minhas apreensões.

- A gente vai entrar no Coque com uma viatura do lado? Né pior não?

- Geralmente, eles não abrem fogo contra a polícia assim, sem provocação. Não de dia, pelo menos.

- Geralmente?
 
- Frederico, você prefere entrar lá sozinho?

- Eu prefiro não entrar!

- Isso aí não pode. Somos inspetores da Vigilância Sanitária do Recife...

- Eu mesmo não, sou só o estagiário, cacete!

- ...e temos um dever a cumprir. E, por Deus e por Nossa Senhora, nós vamos cumpri-lo! – declarou meu companheiro, tomado por um orgulho profissional incomum. Talvez já pressentisse um final trágico para aquela missão e desejasse emprestar uma maior gravidade aquele momento. Continuamos em um silêncio funéreo até chegar á condução, onde o motorista nos aguardava cochilando no banco de trás. Dei uma pancadinha na lataria do automóvel para acordá-lo e o homem ergueu-se preguiçosamente.

- Bom-dia. – fez ele, esfregando os olhos avermelhados e sorrindo debilmente. Encarei meu companheiro.

- Ele não tá sabendo.

- Não tô sabendo do quê?

- Biu, fique calmo. Veja bem, recebemos uma denúncia de emergência e temos que investigar. Hmm. Lá no Coque.

- Minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro! Onde?!

- No Coque, Biu. Que frescura é essa? Você não disse que já morou lá perto? 

- Morei sim senhor. Por isso que tenho medo.

- Não se preocupe, ninguém tá pedindo pra você se mudar de volta pra lá. É pra levar a gente, aguardar a inspeção e trazer de volta. Só isso. E vê se não perde a viatura da polícia de vista. – acrescentou meu tutor enquanto afivelávamos o cinto de segurança.

- Viatura? Cremdeuspai! – Biu, que era evangélico, beijou discretamente uma pequena imagem de Nossa Senhora que levava no bolso da camisa.

Os policiais já aguardavam em seu veículo do lado de fora da sede da Vigilância. Arrancaram pela rua assim que nos viram e Biu fez o que pôde para acompanhar o outro carro. Suspirei fundo e me preparei para adentrar um dos locais mais perigosos da cidade do Recife.

A Comunidade do Coque.


Continua...



Um comentário:

Vai, danado, reclama!