segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Vida de estagiário: o abatedouro clandestino, parte final


Fui o primeiro a descer e fui seguido pelo supervisor da Vigilância. O homem mais velho fez um gesto com a cabeça em direção a viatura mais a frente e caminhamos na direção do veículo. Eram dois policiais apenas e começaram a sair do carro, quando ouvimos um estampido.
PÁ!
Meu coração parou e por alguns segundos meu sangue circulou apenas por uma combinação fortuita de inércia e força da gravidade. Minha vida passou rapidamente diante dos meus olhos, em uma edição que, curiosamente, privilegiava os fatos mais constrangedores. Por algum motivo, lembrei que jamais havia experimentado pipoca doce e aquilo me deprimiu momentaneamente. Consegui focalizar minha visão na viatura na minha frente. Parecia vazia. Teriam os policiais sido abatidos, de uma só vez, pelo disparo que eu havia escutado? Respirando fundo, movi a cabeça para a esquerda. O supervisor estava de joelhos, dois passos atrás de mim. Trazia os braços caídos ao lado do corpo e apresentava uma expressão resignada no rosto, como um mártir que entende que sua hora havia finalmente chegado e percebia perfeitamente o motivo do seu sacrifício. Não parecia estar ferido. Com o canto do olho, consegui ver que a Kombi continuava no mesmo lugar, mas não me virei para confirmar a presença de Biu.
Silêncio. Nem o ar, imóvel, fazia qualquer ruído que anunciasse sua presença naquele lugar esquecido por Deus. Me enchendo de coragem, estava prestes a abrir a boca para me dirigir ao meu companheiro, quando ouvi uma risada infantil vindo mais ou menos da minha direita. Um menininho usando apenas uma camisa do Santa Cruz, que mais parecia um vestido cobrindo seu corpo franzino, olhava para nós e ria maldosamente. Debaixo do seu pé direito, uma caixa de Toddynho estourada.


 Toddynho: Há anos destruindo a vida de pessoas inocentes.


- Há, se fudero! – E saiu correndo por entre os barracos.
Boquiaberto, observei enquanto ele se afastava e só então me dei conta do que tinha acontecido.
- Pirraiafeladaputa! Se eu te pegar, tu tá fudido! – Berrei, impelido pelo excesso de adrenalina no sangue.
- Frederico! Se acalme! Você por acaso sabe quem é pai desse menino? – grunhiu o tutor ao meu lado, aparentemente recuperado de sua experiência de quase morte.
- Hmm. Não, não sei. Quem é? – Perguntei, olhando para os lados, amedrontado.
- E eu lá sei? Mas se mora aqui no Coque, eu que não quero conversa com ele. E você, quer?
Convencido por aquela lógica cristalina, me acalmei e olhei para trás. Biu estava em seu posto, atrás do volante. Ao me ver, ergueu a mão trêmula em um sinal de OK. Nos voltamos para a viatura, onde os policiais haviam miraculosamente reaparecido, erguendo-se lentamente do chão do carro e olhando ao redor desconfiados.
- Esses são os caras que vieram proteger a gente? – Perguntei com desprezo.
- Podia ser pior. Vai que eles pegavam a viatura e iam embora?
- Mas também não vão servir de nada se der merda aqui.
- Claro que vão servir. Servem de alvo. Quem tem farda leva bala primeiro. Na dúvida, jogue o jaleco fora e bote tudo nas mãos de Deus.
Os policiais finalmente deixaram a proteção do veículo e vieram nos saudar.
- Estávamos prontos para dar assistência. Por sorte, não passou de um alarme falso.
- Assistência? De lá do chão da viatura? – Perguntei, indignado.
- Positivo. Estávamos planejando um curso de ação a partir de uma posição mais taticamente favorável. Felizmente, nossa intervenção não foi necessária. – Respondeu o sargento sem se abalar.
- É aqui o abatedouro? – Perguntou meu supervisor, apontando para um casebre miserável na beira do rio, com um pequeno terreno mais a frente. O policial confirmou com a cabeça.
- Mas e aí, qual é a bronca por aqui? Tá faltando a licença da Vigilância? Autorização dos bombeiros? – Perguntei, em dúvida.
- A informação que nos chegou – Respondeu o policial, impassível – era que o estabelecimento estava comercializando carne de cavalo.
- Oi? Carne de quê?
- De cavalo. Às vezes de jumento, mas geralmente de cavalo. Forneciam pra toda a região da Ilha de Joana Bezerra.
- Putamerda!
Já tinha visto coisas estranhas na Vigilância Sanitária antes, mas abatedouro de cavalo, no coração do Recife, era novidade. Depois fiquei sabendo que, de fato, a maioria das carnes comercializadas na região provinha do açougue equino. De forma que quem frequentava a estação de metrô de Joana Bezerra, simplesmente a mais movimentada da cidade e houvesse cometido a imprudência de buscar uma refeição proteica na área, tinha grandes chances de ter consumido um espetinho de cavalo ou um McHorse. 


 Opa, pode escolher? Me vê o mais gordinho, mal passado, beleza?


- Você que de vez em quando faz um lanche lá na estação antes de voltar pra casa, né? – Perguntei ao tutor, já com o estômago meio embrulhado.
- Faço, mas sempre frequento dona Zeza, aquela do sarapatel. Pessoa simples, mas dos mais altos padrões de higiene. – Respondeu o meu companheiro, muito digno.
- Segundo denúncias, dona Zeza é tia do dono do abatedouro e principal distribuidora da carne de cavalo produzida aqui. – Informou o policial, eficiente.
- Putamerda! Véia safada!
- Calma, agora já foi. Dizem que lá no Cazaquistão carne de cavalo é iguaria. É tudo questão de cultura. Melhor a gente ir lá, inspecionar logo e sair daqui. – Falei, apertando o passo para que o veterano não pudesse perceber meu riso frouxo.
Nos aproximamos do abatedouro e vimos movimento no terreno contíguo. Cheguei mais para perto da cerca composta de pedaços de paus podres e vi um pangaré, magro, maltratado e trêmulo. Estava amarrado pela pata traseira em uma tora de madeira e exibiu uma expressão aliviada ao nos ver.


 Ah, meu Deus, ainda bem que vocês chegaram! Cadê o exército?


- Ah, bichinho do cavalo! Acho que esse aí ia ser o próximo. E aí, bora entrar e soltar ele logo? – Perguntei ao sargento, comovido.
- Não podemos. – Respondeu o policial.
- Como assim, não podemos? Não foi pra isso que a gente veio?
- Não, Frederico, ele tem razão. Isso aí é com o Controle de Animais. A gente só veio olhar o abatedouro. – Anuiu meu colega.
- Mas o coitado tá preso e sofrendo maus tratos! E vai virar bife ou espetinho ou o sarapatel de dona Zeza, que algum infeliz vai comer lá no metrô! – Exclamei, indignado.
- Eu sei – Respondeu o supervisor, fazendo uma careta a menção da iguaria equina. – Mas a gente não tem como fazer nada. Se soltar e deixar ele aí, vai acabar sendo pego de novo. Ou então vai pra pista e vai causar um acidente. Você quer tentar levar ele na Kombi?
Olhei para o abatido animal com o coração partido e vi que minha proposta era, de fato, irreal. Cabisbaixo, me afastei da cerca improvisada, sem ousar encarar os olhos tristes do cavalinho.


 Ei, ei! Onde vocês tão indo? Já sei, é brincadeira, né? Ha Ha, vocês voltam, né? Né?! Oi?


E no final das contas, nossa presença no Coque se revelou totalmente inútil. O açougue , cujo dono havia fugido muito antes da nossa chegada, estava trancado com uma grossa e enferrujada corrente. Os despreparados policiais, que sequer possuíam mandato de busca, não poderiam adentrar o local mesmo que estivessem equipados ou dispostos a tanto. Voltamos para a condução em silêncio e fomos escoltados para fora da comunidade, com a sensação de dever não realizado e de um dia de trabalho perdido. No caminho de volta, já nas imediações da sede da Vigilância Sanitária, passamos em frente a uma barraca de espetinhos. Senti um calafrio ao observar as pessoas consumindo vorazmente suas refeições de origem suspeita, alheias ao que estavam ingerindo.
Me despedi dos meus colegas e voltei para casa, com os olhos tristes do pobre cavalinho gravados na minha memória, me acompanhando por todo o trajeto.


3 comentários:

  1. nem sei o que comentar...
    seria muito hilário se não fosse tão dramático.
    mata a curiosidade.... você foi o primeiro a descer tamanha a coragem ou o que?
    e que assistência vocês iriam receber...?
    McHorse? risos!
    não sei mais se é pra rir ou chorar ^^
    sabe que fiquei com outra curiosidade?
    qual deve ser o sabor? XP
    não! bixinhoo... não deixem ele virar sanduíche:/

    fico na imaginação a cara do pobre cavalinho

    ps: sem mandado??? ai foi demais!!!
    nem comento mais...

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  2. Triste, acho que eu não suportaria a situação, ver o cavalinho lá, ver a situação dele, o pior de tudo seria não poder fazer nada.

    Acho que eu teria tentado colocar o coitadinho na kombi hehehe

    Se tem curiosidade de saber como deve ser o sabor da carne de cavalo, deve ser a mesma coisa que carne bovina porém um pouco mais doce dado que os ruminantes estão em constante estado hipoglicêmico e os cavalos não são ruminantes portanto têm mais açúcar, mas eu prefiro nunca descobrir, afinal, na boa, é um cavalo!!!

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  3. Eita triste mesmo...lembrei-me de alguns que cuidamos nas aulas de clínica...bichinhos!Cavalos são lindos troteando, galopando...como comida não!Mas há quem goste!:~~~~

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Vai, danado, reclama!