segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Triste História

Resolvi retornar ao curso de História como aluno especial de uma disciplina, para me preparar para um eventual mestrado e também para voltar ao ritmo de estudos. Como era de se esperar, o professor passou uma lista de livros e pediu que os alunos os resenhassem, enfocando certos aspectos das obras. Levei meu trabalho na aula seguinte e, apesar de não ter tido muito tempo para fazê-lo, estava razoavelmente orgulhoso das minhas cinco páginas de análise, onde eu dava a minha opinião sobre o que eu tinha lido. Não estava uma obra-prima, mas imaginei que os outros alunos estariam mais ou menos no mesmo nível.
Nos sentamos todos ao redor de uma mesa e o professor, grave, apontou para um dos estudantes arbitrariamente.

- Fulano. Você. Comece com seu trabalho.

O rapaz em questão pigarreou e organizou suas anotações. Prestei atenção para identificar logo o que eu poderia acrescentar ou cortar da minha resenha. Não deveria ter lá muita diferença entre os trabalhos.

- Bem, professor. Ao ler o texto, cheguei à conclusão que o discurso do autor em questão está carregado de elementos semióticos, calcados em uma visão quase rosseuniana das relações interpessoais, enfatizando práticas memorialistas que se intercalam e se auto completam, formando um todo de complexidade polissêmica, onde os signos e símbolos explorados se comunicam entre si em uma linguagem prosopográfica, cuja subjetividade oculta uma certa medida de Proust ou mesmo de Chartier, cedendo lugar à vivências registradas sob um ponto de vista anímico, enfocando, em suas entrelinhas, a perda da inocência e a incongruência vivenciada pelo autor em seu habitus pessoal, concorrendo para a formação extra historiográfica do mesmo, contudo sem jamais deixar de apresentar um discurso regionalista e, até certo ponto, puramente individualista.

Olhei para o aluno, boquiaberto. Não conhecia metade das palavras que ele havia usado e nem tinha chegado perto de arranhar a superfície do livro. O cara devia ser um gênio ou algo assim. Olhei para o professor, que cofiava sua barba grisalha da forma como apenas uma autoridade de História pode fazê-lo. Certamente, ele iria cobrir o rapaz de elogios, talvez até mesmo sugerir que ele engatasse um doutorado direto.



 Na foto: a face da simpatia.



- Superficial. Bastante superficial. Esperava mais de você. – sentenciou o mestre, seco.

- Desculpe professor. Dediquei apenas doze horas diárias à elaboração deste trabalho. Ando meio sem tempo ultimamente. – respondeu o estudante, humildemente.

- Hmm. Isso não justifica. Seu texto está primário, na melhor das hipóteses. – ao redor da mesa, os outros alunos balançavam as cabeças em concordância, não pude perceber se com sinceridade ou por puro nervosismo.

- Mas professor...este foi apenas o parágrafo introdutório! Tenho certeza de que nas próximas trinta e sete páginas o senhor vai perceber que eu consegui, até certo ponto, captar a ideia passada pelo autor. – olhei para o meu trabalho de cinco páginas e imediatamente minhas pernas começaram a tremer violentamente.

- Talvez. Francamente, eu duvido. Deixe o trabalho aí do lado que eu darei uma lida em casa, mas já vi que, infelizmente, não posso esperar demais.

- Sim, professor. Me desculpe. O próximo sairá melhor, garanto.

- Não garanta o que você não pode cumprir com absoluta certeza. Bem. Vejamos agora se temos algum trabalho digno de nota aqui.

Baixei a cabeça, o suor porejando minha testa. Depois que eu lesse minha análise, teria sorte se o professor considerasse o material digno de papel higiênico. Minha única esperança era que Deus permitisse que eu acabasse ficando por último e aí talvez não desse mais tempo de eu apresentar meu trabalho.

- Deixe-me ver aqui na chamada. Sim. Frederico, sua vez agora.

Soltei um palavrão mental e coloquei Deus de volta à minha lista negra. Um dia eu teria minha vingança, mas naquele momento eu precisava pensar em uma saída. E rápido. O professor me observava por trás dos óculos de lentes grossas. Meus colegas pareciam exibir em suas faces aquelas estranha mistura de pena e excitamento que sentimos ao acompanhar um animal sendo levado ao abate. Não podia mais postergar. Me levantei lentamente, olhei ao redor e fiz a única coisa honrada em tal situação.

- Professor, minha avó morreu!

- Como?!

- Sim! Isso mesmo! Ela morreu! Acabei de ficar sabendo! – sentados à mesa, os outros alunos trocaram olhares nervosos.

- Mas...como você sabe? Você não atendeu o celular em nenhum momento!

- Pois é...pois é professor. Mas é que eu e minha avó, a gente é muito ligado, sabe? Quer dizer, era, já que ela bateu as botas. Mas enfim, eu meio que senti, sabe como é?

- Não, não sei. – retorquiu o professor, franzindo o cenho perigosamente.

- Bom, mas então. Preciso ir. Funeral sem a minha presença não ia ser a mesma coisa. Nessas ocasiões sou eu que faço o discurso. – gaguejei, enquanto arrumava minhas cosias e jogava meu trabalho de qualquer jeito para dentro da mochila.

- Mas Frederico...

- Até a próxima, professor! Pessoal, valeu aí a força, heim? Boa sorte aí pra vocês e a gente se vê na próxima aula.

Saí da sala apressadamente e corri para o elevador, respirando aliviado.

Nunca mais voltei para a aula.

8 comentários:

  1. Já fugi de uma aula...mas não matei ninguém...apenas provoquei uma reação alérgica em mim mesma e quase tive um choque anafilático (hehe, exagero!), mas ser 100% a favor de algo, que não acredito 10% é bem difícil de ter que engolir, só pra garantir passar na disciplina...enfim!:)
    Não sei se esse seu texto é fictício, mas se for real, por favor retorne às aulas!Aposto que exagerou e sua análise pode até estar coerente!:P

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  2. Tu ainda conseguiste escrever cinco páginas? Eu escreveria cinco parágrafos e olhe lá. Meu nome é concisão.

    Ass: Mauro, o galhofeiro iletrado.

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  3. haahahahaha potzzz eu fingiria um desmaio....srsrss

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  4. Cara, como aluno de história vc deveria saber o quanto a galera é prolixa. Qualquer texto de 1 página é suficiente para um aluno de história escrever uma enciclopédia. Não sei a razão disso, mas acho que é pra compensar suas frustrações.

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  5. Algo semelhante ocorreu comigo. No momento, um terror insópitavel invadiu meu ser. Soltei um peido fedorento, disse que tava com diarreia e fui embora.
    É sempre uma boa solução.

    Ass: Mauro, o galhofeiro flatulento.

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  6. Nem vou citar o que já fiz para fugir de situações como essa! ;p

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  7. O cara quer ser historiador e não sabe nem o que é linguagem prosopográfica...tsc, tsc...

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Vai, danado, reclama!