segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Blecaute II




Meus ouvidos começavam a captar sons que não poderiam existir. Aquele borbulhar era a água do filtro fervendo na cozinha ou meus neurônios estalando devido ao calor? Será que minha massa encefálica entrava em ebulição dentro da minha caixa craniana ou aquele líquido escorrendo pelos meus ouvidos era simplesmente o suor acumulado nos meus cabelos empapados? Sentia que pisava em brasas e que o ar, imóvel, ficava cada vez mais denso, gelificando-se ao meu redor e impossibilitando a minha respiração. Meus olhos injetados de sangue não conseguiam fixar em um ponto só enquanto eu buscava uma saída para aquele pesadelo. Até que vi a janela.

Me aproximei devagar da grande abertura retangular na parede da sala. Sentia minha pele pegajosa e lustrosa de transpiração. Usei o sofá manchado como escada e me cheguei à janela. Olhei para baixo. Ao menos, enquanto caísse, sentiria o ar se movendo e o vento zunindo em meus ouvidos por uma última vez. Não ia durar muito tempo, já que eu morava no terceiro andar, mas seria o suficiente para algum sentimento de libertação derradeira daquele calor horrendo durante os poucos microssegundos que durasse a queda. Não cheguei a pensar na família e amigos que deixaria para trás. Qual o sentido de uma existência sem brisa, mesmo que seja uma artificial, gerada por um ventilador? Se até essa condição básica para a sobrevivência humana no Verão do Recife me havia sido negado, não me custava terminar aquela farsa de vida da forma mais apoteótica possível.

Abri os braços, tentando abraçar a maresia inexistente e fechei os olhos, em preparação à minha passagem para um mundo melhor e, esperava, cheio de correntes de ar. Voltei meu rosto para baixo mais uma vez, sentindo as gotas de suor escorrerem pela minha face. Respirei fundo e me movi para frente.












Apenas para ser arremessado para trás por uma explosão de luz que atravessava as minhas pálpebras apertadas. Me segurei às laterais da janela, me equilibrando precariamente no peitoril. Abri os olhos lentamente, tentando apreender o panorama, agora iluminado, que se descortinava à minha frente. A energia havia voltado e, com ela, todas as lâmpadas do prédio e da maioria dos apartamentos. Inclusive o dos vizinhos da frente, que viam um homem de braços abertos, lambuzado pelo que parecia ser uma mistura de azeite e óleo de dendê, completamente nu. A bilola estaria ao vento, caso houvesse algum. Horrorizada, a família olhava para mim, incluindo a bisavó cadeirante e as sobrinhas gêmeas de seis anos de idade. Todos precisariam se submeter, pelo resto das suas vidas, à terapia intensiva para tentarem extrair dos seus cérebros a terrível imagem que eu havia imprimido neles. Provavelmente seria inútil, mas eles certamente tentariam.

Resignado, desci da janela, após acenar para os espectadores da forma mais natural possível. Apenas a bisavó respondeu, com um sorriso sem dentes. O apartamento se enchia de luz e do som do ventilador voltando ao funcionamento. Busquei o relógio do computador, que acabava de reiniciar seu sistema, esperando um lapso de tempo de, no mínimo, umas sete horas.

O blecaute havia durado 27 minutos.

4 comentários:

  1. Nossa...acho que terei pesadelos com algum ser suado!Grrrhhh. Aqui tem dias que dá vontade de morrer também...o calor está se transformando em um problema de saúde pública! (exagerei, né?)hehehehe.
    :******

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  2. O problema do calor é que ele faz com a gente exale odores desagradáveis, principalmente das axilas.

    Ass: Mauro, o galhofeiro da suvaca.

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  3. Corrigindo: faz com QUE a gente...

    Ass: Mauro, novamente.

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  4. se ele pula da janela seria uma perda inenarrável para os fãs do Blog. e tenho dito!

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Vai, danado, reclama!