segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Moço...

Com o advento do celular, hoje em dia quase ninguém anda por aí com os velhos relógios de pulso. Não é que as pessoas usem o relógio para se comunicar, claro. Só quem faz isso é o Dick Tracy. 



 E com muito mais estilo do que você ou eu.



Elas utilizam o aparelho móvel como relógio mesmo. É por isso que os poucos anacrônicos que insistem em trazer as horas no punho acabam chamando uma atenção indevida. O ser humano parece possuir uma linha de comando impressa em seu DNA que o impele a perguntar as horas sempre que conseguir identificar um semelhante portando um relógio. Quando ando pelas ruas com o meu velho reloginho digital preto e laranja, comprado na Praça do Diário de um negociante de produtos escusos, costumo ser constantemente assediado por transeuntes que parecem não ter nada melhor para fazer do que perguntar “Moço, que horas são?”. Todo mundo pede as horas. O vigia da obra pede as horas. A mulher do vizinho pede as horas. O flanelinha da padaria pede as horas. O mendigo, que não tem horário para nada, pede as horas. E ainda se queda pensativo, em sua caixa de papelão de geladeira último modelo, depois de ouvir a resposta.

Dia desses, andava de bicicleta, atrasado para o trabalho quando uma velha senhora, descabelada e aflita como apenas as velhas senhoras conseguem ser, surgiu na calçada, braços abertos, berrando com voz rouca “Moço, moço!”. Desesperado, dei uma rabeada na bicicleta, capotei no meio-fio e desviei, por pouco, da panela de pamonha fervente da moça da esquina. Corri em direção à velhinha, ignorando a merda de cachorro que eu havia acabado de pisar, já preparado para prestar auxílio à pobre criatura.


- O que foi, minha senhora? É o coração? É a osteoporose? É o coração, meu Deus do céu?!

- Moço...

- Diga, mulher de Deus, diga!

- ...que horas são?

- ...


Sim, passei a defender a eutanásia de idosos depois desse dia. 



 Por esse e por outros motivos.



Mas não foi o único susto que eu levei por causa do relógio. Estava eu dirigindo, à noite, quando parei o carro em um cruzamento pouco movimentado. A falta de ar-condicionado no veículo e o calor sobrenatural do Recife sempre levam a melhor sobre meu instinto de autopreservação, de forma que costumo dirigir de janela aberta. Surgiu um motoqueiro ao meu lado. Tenso, estava a ponto de subir o vidro da porta quando o homem se voltou em minha direção, os olhos dentro do capacete faiscando. Apoiou-se na janela do carro e foi enfiando a cabeça para dentro do veículo. A meio caminho de borrar minhas calças, já ia contabilizando as minhas perdas, ao mesmo tempo em que pensava em formas de manter minha dignidade naquela situação adversa.


- Moço...

- Pelamordedeus, leve o que o senhor quiser, só não me mate! Minha mãe tá em casa prostrada numa cama, ela só tem a mim, o que já não é muita coisa, mas é melhor do que nada e se o senhor me matar, ela também vai morrer e vai ser duplo homicídio porque...

- ...que horas são?

- ...


Passei a odiar todo aquele que me perguntasse as horas. E muitas oportunidades para odiar me foram dadas. Caminhava para casa quando fui abordado por um sujeito de aparência suspeita, trajando o uniforme de alguma das torcidas organizadas da cidade. Tinha o aspecto sinistro daqueles que já não têm mais nada a perder.


- Moço...

- MOÇO É O CARALHO! É O RELÓGIO, NÉ? É A BOSTA DO RELÓGIO!

- O que é isso, moço?! Sou bandido não! Eu só queria saber...

- ...A HORA! QUERIA SABER A MERDA DA HORA, NÉ? POIS ENTÃO TOMA! SOCA ESSA PORRA NO CU! ENTENDEU? NO CU!

- Cremdeuspai, moço...

- TE FODE!


Joguei o relógio no peito do pobre homem e saí, transtornado, pela rua. Lançava olhares furiosos para as pessoas e as únicas coisas que passavam pela minha mente eram morte e destruição, de preferência envolvendo grandes relógios de parede. Do outro lado da via, uma mulher acenou desesperadamente. Senti meu sangue pulsando nos ouvidos e, tomado por pensamentos assassinos, me voltei em sua direção. Súbito, lembrei que havia me livrado do relógio amaldiçoado alguns minutos antes. Olhei para a mulher em prantos e, aliviado, verifiquei que era apenas a sua casa pegando fogo. 

Sorri o meu melhor sorriso, acenei alegremente e segui assoviando em direção à minha casa.

4 comentários:

  1. Hahahaah!

    É, eu também ando de relógio. Sei como é.

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  2. uma opção é dizer a hora acrescentando sempre 30 minutos.

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  3. O bom é quando a galera chega com aquelas piadinhas, tipo: "que horas vai dar?"

    Uma boa forma de interagir com o próximo, não?

    Ass: Mauro, o galhofeiro.

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Vai, danado, reclama!