segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Dentista, parte II







O ser humano é a única espécie do planeta que tenta, de forma consciente e constante, se melhorar. E essa busca pela perfeição começa bem cedo, com os pais obrigando os filhos a realizarem inúmeras atividades supostamente benéficas, como natação, balé, karatê e manufatura de sapatos de marcas famosas. É tudo uma questão de cultura. Quando atividade física extenuante não dá conta, a medicina surge com intervenções que visam corrigir aquelas imperfeições com as quais a maioria de nós nascemos, mas poucos conseguem conviver em harmonia. Um dos procedimentos mais comuns e traumatizantes que uma criança costuma passar é ter que usar aparelhos ortodônticos. O principio da coisa é simples e brutal: busca-se reposicionar os dentes de um ser humano enquanto eles ainda estão enraizados em suas gengivas, utilizando uma série de instrumentos cujo único propósito é remodelar as arcadas dentárias que nos foram dadas por Deus e, dessa forma, afrontar toda a Sua obra.

E assim foi que, quando eu já havia perdido os meus dentes de leite e os permanentes começavam a nascer, meus pais perceberam algo estranho. Algo...não natural no meu sorriso. Com o passar do tempo, ficou evidente que alguma coisa terrivelmente errada estava se passando dentro da minha boca. Assustados, meus pais fizeram o que qualquer pai preocupado faria: acionaram os serviços de um padre que, após me inspecionar cuidadosamente, recomendou um ortodontista de reputação ilibada e preços populares. Ao chegarmos no consultório, fui encaminhado para a sala de Raio-X, onde permaneci imóvel pro vários minutos enquanto o técnico, sensato, se escondia atrás de uma placa de chumbo. Estávamos na sala do dentista quando chegaram os resultados. Incrédulo, o doutor mostrou os exames para a minha mãe, que arregalou os olhos e proferiu, com sua delicadeza habitual:

- Mas meu filho...é um macaco escritinho.

O dentista chamou minha mãe de lado e ambos confabularam em sussurros preocupados. Pode ter sido apenas minha imaginação, mas tenho quase certeza de ter escutado as palavras “aberração”, “impossível” e “eutanásia” no meio da conversa. No final, minha mãe deve ter convencido o doutor de que a ciência da Ortodontia tinha muito a aprender tentando consertar meu sorriso antes que ela fosse obrigada a me entregar ao zoológico da cidade. E foi assim que comecei a usar aparelhos. No plural mesmo. Aparentemente, minha condição só podia ser corrigida através da ação conjunta de todos os artifícios dentários criados pelo homem, além de outros que eram certamente proibidos pelas leis de países mais civilizados do que o Brasil. Inicialmente, me recusei a ser a cobaia daqueles experimentos. Por fim, em busca de aprovação materna e de uma aparência razoavelmente humana, concordei com o tratamento. O medo de ser sequestrado por algum circo itinerante também pesou da decisão.

Me fizeram usar peças metálicas coladas aos dentes, que cortavam meus lábios e minha língua, além de um aparelho removível, junto ao céu da boca, que na época achei bastante semelhante à dentadura da minha avó, só que sem os dentes. Uma espécie de chapa banguela, o que apenas a tornava mais sinistra sua aparência aracnídea. Além desses dois, precisava utilizar pequenas ligas de borracha conectando as mandíbulas, que forçavam minha dentição a se manter dentro da minha boca e não assustar os vizinhos. Não satisfeito, o doutor achou por bem me brindar com um aparelho extra oral, um tipo de para-choque metálico que sai da boca e se fixa na nuca do condenado. Eu precisava usar todos esses dispositivos ao mesmo tempo, durante o dia e mesmo na escola. Como os professores, por algum motivo, não permitiam que eu vestisse um saco de estopa na cabeça, precisei aprender a lidar com minha infeliz situação. E quando falo “aprender a lidar”, na verdade quero dizer “me segregar em locais obscuros da escola junto com os outros anormais”. Em termos de esquisitice, eu só perdia para o pobre coitado que usava colar correcional no pescoço e a menina albina. Havia um garoto anão que costumava andar conosco, mas ele logo percebeu que estávamos queimando o filme dele e nunca mais apareceu. Soube depois que teve uma grande carreira profissional em um dos postos de gasolina da cidade.



Ninguém era páreo para sua elegância.



Apertar o aparelho doía tanto que a única opção de alimentação era intravenosa, por semanas a fio. Os dentes ficavam bambos ao ponto de me fazer perder a paciência e tentar corrigi-los usando as mãos mesmo. Afitas eram uma constante e não havia escovação que fizesse com que todos os fragmentos das refeições se desprendessem da teia metálica que era o meu sorriso. Chegava na sexta sentindo o gosto do almoço da segunda. Durante a semana, sofria o bullying das outras crianças quando a expressão ainda não havia se popularizado, mas suas consequências já eram bastante palpáveis. Minha única distração durante os recreios solitários era assustar as crianças das séries mais baixas. O cimento do aparelho fixo deixava as partes visíveis dos dentes amareladas e as pessoas na rua já começavam a pedir cigarro quando eu sorria. Finalmente, depois de anos de dor e isolamento, chegou o momento de retirar todos os mecanismos que lotavam a minha boca. Depois do procedimento, a primeira coisa que eu percebi é que agora havia tanto espaço na minha cavidade bucal que minha língua ficava um tanto perdida, como se tivesse vivido por anos em uma quitinete e agora houvesse se mudado para um duplex com salão de festas. O dentista não escondeu a surpresa com o resultado, duvidando menos de sua própria capacidade do que das minhas chances de exibir um sorriso que não fosse encarado como um prenúncio do apocalipse. Minha mãe já não mandava eu me esconder no quarto de empregadas quando tinha visita em casa e o futuro se avizinhava brilhante. No final, tudo acabaria bem. Não fosse pelos meus dentes sisos que surgiram logo que terminei o tratamento odontológico e reverteram todo o processo de correção.

Hoje, quando me pedem para sorrir, mando logo tomar no cu.


2 comentários:

  1. HAHA, que droooga!
    Eu preciso por aparelho, mas estou enrolando a anos. Não quero ser torturada. :(
    Beijo.

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  2. isso ai Gab, enrola bastante!

    assim a o seu osso estará cada vez mais maturado consequentemente vc sofrerá mais!

    abraços...

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Vai, danado, reclama!