sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Detesto ônibus II: objetos irremovíveis ou a Guerra das Bundas





Tomei o ônibus para mais uma viagem de casa para a faculdade. Distraído, imaginava quais vergonhas eu passaria durante a aula quando um indivíduo, portando um capacete de motoqueiro, sentou ao meu lado. Tinha ombros largos, cara de poucos amigos e, aparentemente, um órgão genital de proporções tão dantescas que exigiam que ele mantivesse as pernas tão abertas quanto uma prostituta em dia de pagar o aluguel. Despejou-se no assento como se fosse a poltrona da sua casa, fazendo pouco caso do meu espaço pessoal. Sentindo minha moral atacada e minha individualidade subitamente invadida, fiz o que qualquer homem com um mínimo de respeito próprio faria: contra-ataquei. Forcei minha presença para retirá-lo do meu lado da fronteira, aproveitando-me da desorganização do assalto inicial. Desacostumado a uma resistência tão feroz, o sujeito recuou até sua porção do assento. Com o canto do olho, estudamos um ao outro, medindo forças e fraquezas, buscando adivinhar a disposição do inimigo, tentando descobrir quem, afinal, iria mais longe na defesa de sua soberania glútea. E assim começou o conflito que viria a ser conhecido nos Anais da História como a Guerra das Bundas.

Naquela guerra fria particular, nenhum milímetro de território seria sacrificado. Cada respiração profunda se configurava em uma tentativa de demover o inimigo. Resoluto, eu buscava me ancorar ao assento utilizando a minha bunda, as nádegas funcionando como pseudópodes de um organismo unicelular determinado a sobreviver a um combate de morte com um oponente ancestral. Nenhuma fraqueza podia ser demonstrada. Em momento nenhum eu cedi à pressão constante. Nem mesmo quando o ônibus saltou por cima de um quebra-molas, fazendo com que meu oponente e eu aterrissássemos, impassíveis, sobre nossos respectivos sacos escrotais. Muito menos quando o motorista do veículo, ensandecido, passou desembestado pelas próximas sete lombadas, destruindo para sempre minhas esperanças de constituir uma família com filhos ou mesmo de manter uma ereção por mais de dez segundos. Eu era uma rocha estéril, uma árvore petrificada eternamente enraizada no banco do coletivo. Na minha frente, uma senhora calva e de aspecto sujo, penteou seus cabelos ralos com uma escova de bolso. Uma avalanche de caspa voou em direção aos meus olhos, como flocos de neve de um horrendo inverno nuclear. Nem mesmo pisquei.

Em certo momento, meu adversário fechou os olhos. Teria caído em um sono exausto e povoado de terríveis pesadelos envolvendo sangue, morte e glúteos masculinos? Eu rezava para que fosse assim. Ou estaria ele concentrado, orando para algum deus maldito em busca da força necessária para sobrepujar a minha vontade? Em silêncio, eu pedia às entidades sobrenaturais que tomassem posse de algum desafortunado motorista e o fizessem enfiar seu carro embaixo do ônibus, fazendo o coletivo capotar e arremessar meu vizinho de assento janela afora, defenestrando meu competidor e encerrando de vez aquele conflito. A pressão continuava e a minha bunda, travada em uma cãibra inumana pelo que pareceram horas, havia se tornado apenas um receptáculo de dor e cujo sofrimento aumentava exponencialmente a cada sacolejada do veículo. Subitamente, algo mudou. A barreira humana do meu lado esquerdo pareceu estremecer, fraquejar. Finalmente, o motoqueiro se ergueu e eu me preparei, automaticamente, para levar uma capacetada no nariz. Mas o golpe jamais veio. Em júbilo, percebi que ele finalmente havia chegado à sua parada. Creio que detectei uma lágrima brilhante no canto mais esquecido do seu olho direito, mas pode ter sido apenas uma impressão. Meu braço estava parcialmente gangrenado, minha genitália totalmente inutilizada e meu traseiro havia perdido toda e qualquer sensibilidade, criando perigosas possibilidades para um futuro permeado de ônibus e metrôs lotados. Mas eu estava feliz.


Havia vencido.

5 comentários:

  1. Fred, quais linhas de ônibus você usa? Vem pegar os Camaragibe´s, vem! Os usuários são, errr, peculiares. Até os cobradores são diferenciados =P

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  2. Camaragibe? Pff. Eva, já fui de Boa Viagem até o terminal de São Lourenço da Mata, onde nem os nativos ousam ir, com apenas 1 vale A (e outro pra voltar)! Viva a integração! E viva os fones de ouvido!

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  3. Nunca vi uma abordagem tão.... sincera numa crônica!

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  4. Ah, eu tenho sorte, sempre acabo do lado de gordos. Não tem nem como lutar.

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  5. HAHAHAHA muito bom! Também travo batalhas homéricas dentro do ônibus! Principalmente quando não consigo sentar. Cada milímetro de braço que posso apoiar para me segurar é sagrado.

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Vai, danado, reclama!