domingo, 4 de dezembro de 2011

Um quarto de vida





Depois de décadas de uma vida totalmente diferente do que se vê nos seriados e filmes americanos, a gente finalmente dá um freio na meninice e resolve que já deu, hora de pegar o beco, dar o pinote, sair da casa dos pais. O sonho americano e cinematográfico nos traz jovens bonitos e talentosos, se divertindo enquanto fazem um bico na lanchonete estilosa da esquina ao mesmo tempo em que conseguem pagar um apartamento digno, bem localizado e decorado com bom gosto, tudo isso enquanto perseguem incansavelmente seus sonhos de sucesso, pontuados por alguns leves e bem-humorados percalços.

Na realidade brasileira, a coisa é um pouco diferente. Permanecemos, por comodismo, tradição, medo ou pura falta de grana, sob as asas dos progenitores, sejam elas acolhedoras ou simplesmente resignadas. Sai-se de casa quando se casa, mais ou menos como diz o ditado. Muitas vezes, os casais vão se arrumando na casa dos pais, sogros ou até procuram seu próprio espaço por um tempo, voltando assim que a realidade golpeia com mais força. Uma combinação de baixos salários iniciais, apreensão quanto ao futuro, mercado imobiliário selvagem e pressão familiar prende os jovens brasileiros aos seus pais por tempo indeterminado, mesmo que essa mistura não dê liga. E, convenhamos, mesmo quando dá, a verdade é que convivência, especialmente entre parentes, possui prazo de validade.

Alugar um quarto na casa dos outros é uma experiência esquisita. Mas foi a opção mais viável que tive quando decidi, já bastante tardiamente, abandonar o ninho. Encontrei uma casa no tradicional bairro da Boa Vista, em uma rua tranquila, arborizada e de ladrilhos. A casa em si já viu dias melhores. O portão quebrado range ameaçadoramente para o visitante que ousar adentrar o jardim de plantas mortas, enquanto a brisa traz uma garoa fina de tinta descascada. Os hóspedes ficam no quintal, onde há um pátio e duas mangueiras. As árvores, quer dizer. Meu quarto fica ao lado de onde a proprietária, vamos chama-la de Dona Mema, reside com as filhas e duas cachorras, que latem furiosamente quando sentem a aproximação de qualquer estranho, animal, brisa suspeita ou espírito desencarnado. As cachorras, quer dizer, não as filhas.


- Mas Dona Mema, eu argumentava, olhando apreensivo para os cães que rugiam próximos da grade do terraço, a senhora acha uma boa ideia elas ficarem soltas assim?

- Não tem problema. Já já acostuma.

- Sei. Então, elas não avançam, né?

- Avançar, elas avançam, explicava Dona Mema calmamente, entre uma baforada e outra do seu cigarro barato, porém suficientemente blasé, mas se isso acontecer, pode pegar um cabo de vassoura e danar nelas.

- A...senhora deixa uma vassoura aqui no quintal pra isso?

- Não. Cada hóspede traz sua própria vassoura.


Uma vassoura de cabo resistente foi umas das minhas primeiras aquisições, mas eu insistia comigo mesmo que ela só seria necessária para limpar o quarto ou para descansar como um morcego atrás da porta, em dia de visitas indesejáveis. Por via das dúvidas, ando com ela para cima e para baixo e as pessoas pensam que eu ajudo a pagar o aluguel varrendo o quintal. Há apenas uma geladeira para todos os nove condôminos, de maneira que as compras de todos se misturam promiscuamente nas prateleiras refrigeradas. Pelo sim, pelo não, etiquetei as minhas, escrevendo meu nome e adicionando uma carinha feliz, no intuito de assaltar a consciência do desgraçado que considerasse roubar a minha pouca comida. Só havia encontrado etiquetas festivas e pensei seriamente se, ao marcar meu leite achocolatado com um “PARABÉNS PARA VOCÊ”, eu não estaria encorajando a vizinhança a levar as mercadorias como se fosse presente mesmo. Adotei o terrível e compulsivo hábito de contar quantas salsichas restam na embalagem antes de dormir.

Morar em um quarto alugado, como eu já falei, é uma experiência estranha, mas ao mesmo tempo libertadora. É preciso transcender certos hábitos e quebrar paradigmas cultivados durante anos de vida familiar. E para isso, não há nada melhor do que compartilhar um banheiro com mais dois estranhos. Todos os quartos possuem duas portas, uma que se abre para o quintal e outra para o corredor onde fica o banheiro. Um desses antigos, espaçosos, pé-direito alto e um empoeirado e anacrônico bidé. O armarinho não possui espelho e é preciso se arrumar no tato. Em um canto da parede de azulejos, fragmentos rasgados de frases de autoajuda, declarando que é preciso “amar a si próprio” e garantindo que “o sucesso virá”. A água do chuveiro é fraquinha, preguiçosa, não merece ser chamada de ducha. Um balcão de louça verde paira sobre a pequena pia, uma opção hidráulica infeliz que obriga quem for escovar os dentes a praticar cuspe à distância. E há uma privada. Dividida entre mais duas outras bundas, junto com os seres humanos que as acompanham, embora eu nunca os tenha visto e esteja supondo que existam, guiado pelo bom-senso e pelo que recordo das aulas de Biologia do Ensino Médio. É praticamente impossível olhar para o assento da privada sem pensar em todos os glúteos que passaram e passam por ali. Traseiros suados, peludos, tatuados, asseados, com espinhas, marcas de mordidas, manchas de batom. Sempre levo meu detergente para o banheiro comigo.

Às vezes, a Internet não funciona. Às vezes, a água para de correr. Às vezes, falta luz.


- É essa Católica aí do lado, explica Dona Mema, compenetradíssima. Usam energia demais, estouram o gerador, sobra pra gente aqui.

- E aí, o que a gente faz nessas horas?

- Compre logo fósforos e velas. Muitas. Acena uma quando faltar energia e aproveite, segue ela, dando um trago demorado no cigarro amassado, para rezar, que só faz bem.


A Rua do Lazer, reunindo estudantes da Universidade Católica, é um bem-vindo sopro de vida e movimento praticamente na esquina da casa. Há carros bem polidos, importados, guardados por flanelinhas zelosos, que parecem brotar do rejunte que separa os paralelepípedos da rua. Há rapazes de cabelo liso e camisa polo tomando cerveja para embriagar o tempo. Há meninas de salto alto e bochechas vermelhas se alimentando de olhares. A casa vizinha é uma academia de artes marciais, apregoando o ensino de uma infinidade de estilos de luta com nomes exóticos. O desenho de um samurai, espada em punho sobre um fundo vermelho, parece vigiar a rua, procurando sua honra perdida de ronin estático, uma gárgula oriental ignorada pelos marginais que perambulam pelas redondezas de madrugada. Á noite, se transfigura em bar, com mesas na calçada e música brega vertida aos borbotões de caixas de som empoleiradas no muro rachado. Saio sem bater o portão e perco alguns momentos me reorientando. O mar já não fica mais para o mesmo lado, parece. Decido por um caminho e olho para trás, para a casa que não é minha casa, nem dos hóspedes passageiros, nem mesmo de Dona Mema e suas cachorras. É uma espécie de sala de espera, um purgatório para os que não têm um lar, mas almejam construir um logo. Uma casa temporária, que existe apenas quando lá habitam pessoas. É onde eu moro e agora é minha casa também.

Por enquanto.



11 comentários:

  1. Isso é uma casa, não um lar. O ambiente me parece tão inóspito... me deu vontade de ficar para sempre na casa da minha mãe. Não, não vou sair daqui! Muito bom texto. Me fez pensar que minha casa é a melhor do mundo.

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  2. Adoro descrições! Adoro o jeito como as coisas são desenhadas em sua retina e, sobretudo, nas "veias dos seus sentimentos". Mas o mais legal é seu o humor. Mesmo na pior das situações, ainda há que se achar a graça. Às vezes, ela está escondida, mas os mais sabidos sempre a encontram (reviram o tapete, procuram atrás da porta, nos fios da vassoura que estava escondida lá, não importa onde, acham!). Como você é sabido! A vida é isso, dores e delícias... As dores nos ajudam a valorizar os momentos aprazíveis, quando chegam. Nos fortificam, são o fermento do amadurecimento - não existe crescimento sem dor e é na dificuldade que a gente se conhece melhor. Torço para que essa sua fase seja cheia de pitadas de fermento, mas que essa "refeição" não precise passar muito tempo no forno ;).

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  3. é.. ninguém disse que seria fácil... mas poderá ser bastante divertido.. e é tudo história pra contar ( e pra gente ler!!!).. Beijão pra ti Guri!!!

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  4. caramba... que máximo!
    rubem alves fala que o escritor coloca sua carne e seu sange no que escreve e o leitor come esta carne e este sangue, e a isto ele chama de eucaristia (sim, é antropofagi ou canibalismo, mas para os não-cistãos, a gente inventou um nome mais bonitinho). então, é na eucaristia que se dá a comunhão. e, poxa, estou em comunhão contigo... sentindo um pouco o que me espera nos proximos meses... ansiedade, de deixar o ninho, medo do novo, frustação de não viver um conto de fatas, mas muito de realização: sim, agora sou eu, só eu.
    ótimo texto (o seu, é claro!)

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  5. Fiquei com vontade de cagar nesse banheiro e fazer parte da história dessa privada, que já viu passar inúmeras nádegas, abundando em suas bordas. Dia desses vou lá dar um barro.

    Ass: Mauro, o galhofeiro cagão.

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  6. Cara, eu morei só já, num moquifo, mas o teu parece ser bem pior!!!! kkkkkkkkkkkk

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  7. Muito bacana o modo como descreve as situações e como leva a vida. Ainda mora neste quarto?

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Vai, danado, reclama!