quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O cabeludo e a freira, Parte 2


As pancadas na porta reverberam por todo o corpo de Pedro. Considerou seriamente a possibilidade de simplesmente sair correndo dali, pular o muro da escola e nunca mais voltar. Depois disse a si mesmo que estava sendo ridículo. Ele iria conversar com uma freira idosa que, por acaso, era a Diretora da escola onde ele estudava por mais tempo do que os seus pais estavam casados. Ela iria pedir para que ele cortasse os cabelos, ele iria negar-se e a coisa ficaria por isso mesmo. O que ela poderia fazer de tão terrível, afinal?
- Entre. – soou uma voz rouca de dentro da sala.
Pedro empertigou-se e abriu a porta lentamente. Encontrava-se em um recinto escuro e abafado. Percebeu que as paredes estavam cobertas de imagens afixadas em pesadas molduras de madeira trabalhada. A grande maioria representava Jesus Cristo em algum momento de intenso sofrimento durante seu calvário, em detalhes vívidos e perturbadores. Nas prateleiras pesadas havia livros que Pedro não conseguiu identificar, grandes volumes encadernados em couro. Também haviam algumas estatuetas de santos católicos, todos mártires sendo mostrados no momento do seu sacrifício. Ali estava São Sebastião, coberto de flechas como um alfineteiro, exibindo uma expressão de intensa agonia. Viu São Pedro sendo crucificado de cabeça para baixo, a dor estampada em seus olhos, mas formando uma imagem que, para Pedro, era até um pouco cômica. Havia outras figuras do cristianismo que ele não conseguiu identificar. Não viu sinal de plantas ou qualquer tipo de ornamento. Finalmente, seu olhar se fixou na enorme escrivaninha à sua frente. Também estava coberta de livros antigos e imagens de pessoas sendo horrivelmente torturadas, o que levou Pedro a pensar que ser um santo da religião católica deveria ser um péssimo trabalho, já que a aposentadoria parecia consistir, basicamente, de sofrimento extremo e mortes grotescas. Atrás da mesa, encontrava-se a Diretora. Pedro reprimiu uma exclamação de espanto, mas não teve certeza se teve sucesso.
Era uma mulher devastada pela idade avançada, cujos anos pareciam ter sido talhados á faca por todo o rosto, a única parte do seu corpo, além das mãos, visível no hábito que lhe cobria por inteira. Era baixa e corcunda e trazia as mãos esqueléticas cobertas de veias protuberantes, verdes e azuis. O rosto murcho era marcado por incontáveis rugas, mantendo sua face petrificada em uma eterna expressão de desgosto. Além disso, usava um par de óculos cuja lente direita era totalmente escura, evidenciando que a mulher havia perdido uma visão. Seu nome era Irmã Bondade. De alguma forma, isso parecia deixar sua figura ainda mais sinistra.



 
- Sente-se. - crocitou a mulher, observando Pedro fixamente com seu olho são. O rapaz obedeceu rapidamente, acomodando-se em uma cadeira baixa e desconfortável, que o deixava em um plano inferior ao da religiosa à sua frente. Ela desviou o olhar para alguns papéis na escrivaninha, folheando-os vagarosamente. Voltou a atenção para Pedro, olhando-o como se ele fosse algum tipo de invertebrado, que havia inadvertidamente entrado em sua sala, talvez arrastando-se por debaixo da porta. Perguntou, os olhos fixos e a voz baixa: 

- Nome...
- Pedrinho. Hmm, Pedro. Pedro Luís dos Santos.- acrescentou rapidamente, como se houvesse marcado um ponto.
- Ah, sim, o cabeludo. - murmurou a freira, fingindo recordar do caso apenas naquele momento e franzindo os lábios como se acabasse de proferir um palavrão e sentisse a boca suja por isso.
- Sou eu mesmo...- respondeu em voz baixa Pedro, pressentindo que o sobrenome não iria ser de grande ajuda.
A diretora fez uma careta de asco, entrelaçando os dedos antes de continuar:
- Então você é o famoso cabeludo do Santa Maria, não é? O que não possui respeito algum pelas regras deste colégio, base da educação de tantas personalidades ilustres desta nossa cidade. - Pedro abriu a boca para protestar, mas a freira interrompeu-o.         
- Boca fechada enquanto eu falo rapaz! Pensa que eu não o conheço? Acha que eu não sei o tipo de gente que você é? Sempre se rebelando, tentando subverter as regras estabelecidas pela sociedade. Eu conheço você bem demais.
- Peraí – protestou Pedro, sem conseguir se conter mais - a senhora não me conhece, não sabe nada da minha vida, não s...
 - Pedro Luís dos Santos, – começou a religiosa, elevando a voz acima da do rapaz, que calou-se imediatamente - filho de Maria Pereira dos Santos e de José Ricardo dos Santos, filho único, nascido em dez de outubro de mil novecentos e noventa e quatro, tendo, portanto, quinze anos de idade. Rendimento escolar apenas satisfatório, pouca participação em sala de aula, bom aluno de Educação Física, representante de turma no ano passado e retrasado. Gosta de música estrangeira de qualidade duvidosa, jogos de computador violentos e de ir ao Shopping Center, praticamente todos os dias, apenas para vadiar com outros colegas. Também todos os dias, vai à cantina do seu Júlio, sempre no segundo intervalo, geralmente após ir ao banheiro. Compra uma coxinha, mais um copo de refrigerante, dirige-se à quadra de esportes e aguarda, enquanto come, a sua vez de jogar futebol. Terminada a aula, espera que o seu pai ou sua mãe venha busca-lo na porta do colégio, onde fica jogando conversa fora com os mesmos amigos que você irá, fatalmente, encontrar mais tarde no Shopping Center. Esqueci alguma coisa?
 - Não...- respondeu Pedro, assustado com os conhecimentos da religiosa e chocado ao se dar conta do quanto a sua vida era resumível.
 - Então, como pode ver, rapazinho, eu conheço você. Eu-conheço-você-bem-demais. Enfatiza a freira, sorrindo maldosamente. A essa altura da entrevista, Pedro já começava a sentir algo muito parecido com pânico. Como pretendia cursar Direito, como o pai o fez, resolveu apelar para legalidades e tentar, pelo menos, confundir a religiosa.
- Não sei se a senhora sabe, mas a constituição garante, democraticamente, à todas as pessoas, o direito de ir e vir, de expressar suas opiniões e de se vestir como quiserem também. - Despejou Pedro, contente de ter decorado a sua parte no trabalho de História sobre as leis brasileiras.
- Isso é lá fora.
- Como as...
- Isso é lá fora. Dentro do MEU colégio, EU faço as regras, EU escrevo a constituição e EU sou, de uma só vez, os poderes executivo, legislativo, judiciário e, principalmente, religioso!
- Mas...mas...mas isso não é jus...
- O que não é justo, moleque, é haver tanta gente aí fora, sem ter onde morar, passando fome, sem poder estudar e você a ponto de jogar fora este privilégio porque quer deixar esse cabelo crescer!
- Jogar fora...?Então, a senhora quer dizer...
- Eu quero dizer - completou a freira, um sorriso sádico se abrindo em seu rosto encarquilhado - que o estatuto do colégio prevê e condena qualquer comportamento e/ou vestuário que fuja dos padrões pré-estabelecidos, aí incluindo-se namoros dentro e nos limites externos da escola, brincadeiras violentas ou viciosas, acessórios femininos sendo usados por rapazes e, é claro, garotos de cabelos compridos. Em outras palavras, cabeludo, você não fica neste colégio. É claro que você pode, se quiser, optar por deixar a escola. É seu direito inalienável e - acrescentou maldosamente - democrático.
Silêncio. Pedro mantinha os olhos pregados ao chão, enquanto a irmã Bondade deixava o mal-estar causado pelas suas palavras carregar o ambiente, sufocando a sua presa, ali em pé, quase abatida. Pedro saboreava a derrota quase sem ter lutado. Sentia que aquilo estava errado. Sabia que era vítima de prepotência, despotismo e  autoritarismo, ainda que não encontrasse bem o sentido daquelas palavras e lhes adivinhasse apenas vagamente o significado. Sentia, sem saber, o cansaço dos lutadores, que tentam ir contra os poderes do mundo e parecem nadar, sempre, contra as ondas de um mar sem fim, a qualquer momento prestes a se afogar e este momento, para ele, havia chegado, mal havia posto os pés na água. Mas não podia ser assim. Não deveria ser assim. E não seria. Lutaria, ainda que sem esperanças. Começou a pensar, a martelar seu cérebro furiosamente, buscando em sua cabeça alguma coisa, qualquer informação que, se não o salvasse da tirania, ao menos fizesse com que as pessoas, no futuro, passassem por ele e dissessem “Ali vai um bravo. Perdeu, mas com certeza lutou e não se entregou antes do fim.”
Antes de tudo, deveria erguer a cabeça e encarar o seu destino como um homem. Começou, lentamente, a levantar o olhar do chão de mármore escuro e assim foi subindo, até encarar de frente seu algoz, a terrível Irmã Bondade. Tentou sustentar o olhar, mas vacilou sem conseguir sustentar-se em face da horrenda expressão de triunfo monocular da religiosa. Repugnado, subiu um pouco mais o olhar e foi só então que, distraído como era, percebeu, na parede atrás da freira, um pouco acima do espaldar da cadeira, uma pintura de Jesus Cristo. Fixou o olhar naquela gravura, passando os olhos pelo rosto inexplicavelmente alvo, as gotas de sangue porejando sua testa, os cabelos compridos. Cabelos compridos? Era verdade, havia esquecido daquele fato, Jesus Cristo possuía cabelos compridos. O filho de Deus era cabeludo, como ele! Aliás, muito mais do que ele, já que o Salvador exibia, naquela gravura, uma cabeleira de causar inveja à muitos dos seus ídolos musicais. 


 
Rock n’ Roll!


Sentiu o coração batendo mais forte. Não havia mais dúvidas, ele sabia exatamente o que falar. Sorriu, e ao fazê-lo, destruiu o sorriso que deformava o rosto da freira. Jogou os cabelos para trás com as mãos, fazendo com que a irmã Bondade agarrasse o crucifixo em seu pescoço e murmurasse algo entre os dentes cerrados.
- Não vou cortar o cabelo.
- ...como?
- Isso mesmo que a senhora escutou. Não vou cortar o cabelo.
- Ah, não vai? - Ameaçou a diretora, tentando esconder o seu choque.
- Não. E a senhora sabe por quê?
- Por quê?-Perguntou a freira, a voz tremendo de raiva.
- Porque eu não preciso. A senhora falou que era errado usar cabelo comprido neste colégio, mas Jesus Cristo, que a senhora jurou obedecer e servir, ele que é o filho do nosso Senhor, que morreu pelos nossos pecados, ele tinha cabelos compridos!
Silêncio.
- Se o chefe da senhora, ou melhor, o filho do chefe, usava cabelo comprido, por que é que eu não poderia usar? - Insiste Pedro, sentindo, pela primeira vez na vida, o prazer de esmagar o espírito de um inimigo mortal.
Mais silêncio. Calmamente, a freira retirou os antiquados óculos de aro grosso, limpou a lente esquerda, transparente, com uma flanela que extraiu de algum bolso, recolocou-os e então encarou o cabeludo.
- E você sabe por que Jesus Cristo possuía cabelos compridos? - Perguntou calmamente.
- Não...-Respondeu Pedro, um tanto confuso.
- Porque Jesus Cristo nunca estudou no Colégio Santa Maria! Porque se tivesse estudado, eu já teria mandado ele cortar aquela juba! No meu colégio, valem as minhas regras, pode ser filho de Deus ou do cão! E o senhor vai me aparecer aqui na segunda-feira bem cedo, antes da aula, de banho tomado, dente escovado e cabelo cortado, entendeu?
Silêncio.
A turma do Shopping estranhou a ausência de Pedro, que era capaz de faltar o treino de futebol, mas não deixava de encontrar com os amigos. Porém naquela tarde de sexta-feira, ele não apareceria.
Havia ido cortar o cabelo.

Um comentário:

  1. e eu quase achei que o Pedrinho iria se dar bem!
    kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
    Muito bom!!:P

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Vai, danado, reclama!